domingo, 21 de dezembro de 2008

Humana

Há os olhos de quem morre. De certo, poucos sãos os que viram os olhos de um igual a morrer. A iminência do fim... Será que a morte é um mistério também para os outros animais?

Faz todo o sentido para o búfalo, herbívoro, servir de alimento ao leão? É provável que sim. Talvez, ele apenas se pergunte, "por que dói tanto"? Talvez a sua manada sinta a sua falta, ou talvez os demais nem notem a sua ausência, em meio aos outros.

O mistério, para mim, é a dor de quem morre, a asfixia do último suspiro, aquele ir sem volta. É uma solidão tão intensamente vivida... engraçado eu me lembrar de uma emoção vivida na morte. Agora, eu sei que comigo estava também a morte naquela tarde.

Minha emoção transborda em lágrimas, mal consigo escrever. Sou agora como um chimpanzé que entra na jaula pela primeira vez. Sou a baleia capturada por um arpão em pleno mar. A minha dor é uma dor da raça. Eu... fiz. A cada segundo a sensação do meu amigo a me apertar o abdome, antes da batida...

Não o quis fazer, não sei. Revi a história toda, Felício morreu. Há em mim um inacabável buraco.

A morte a espreita. Jackson... Jonas piorou seu estado de saúde. Ninguém consegue encontrar o cão, estamos todos como que atados. Preocupo-me mais com Jonas do que comigo. e eu parar para pensar em meu drama e meu futuro e minhas mortes, terei que atravessar uma enorme correnteza, a arranhar minhas pernas e a esmorecer um pouco mais a cada passo. A querer voltar ao ponto de partida. A querer curar Jonas, a querer encontrar Jackson.

Sei que ele morreu e estou atada. Sou a ovelha ao se confrontar com a lâmina que porá fim à sua vida. Sou a morte. Se ao menos encontrasse Jackson e conseguisse salvar Jonas...

A minha raça é miserável. Sua estrada levou-me a querer experimentar o perigo, porque creio ser maior, inatingível; creio ser eterna e creio ser única. Ser humana parece-me o pior dos privilégios.

Sou o cocô do cavalo do bandido. Sou o cavalo e o bandido. E sou a dor tremenda e aguda. Estou morta também.

Há os olhos de quem morre e o coração de quem mata. Porém, há uma razão para isso e a presa a conhece tanto quanto o predador. Por que dói tanto? Por que me sinto presa ou predador, quando sei que eu não tinha fome, quando eu não sou uma leoa à caça? O que me fez chegar até aquele cruzamento?

Eu sou humana e preciso de amor... Há alguém que pode me devolver esta luz. Jonas não pode morrer também. Estou cansada.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

SMS

GUTA
ESTOU MELHOR, OBRIGADO POR TUDO.
ME IRMÃO VIU O RAPAZ QUE ROUBOU MEU CACHORRO.
PEDI A ELE PARA IR AO SEU QUARTO LHE DIZER COMO ELE ERA.
AJUDE-ME, GUTA.
EU ESTOU MUITO TRISTE.
PENA EU NÃO PODER IR AO SEU QUARTO.
ESTOU SEM FORÇAS. MEU CORAÇÃO ESTÁ PARTIDO.
JONAS.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

A armadilha

Jonas sentiu-se mal, está internado aqui, no terceiro andar.
Eu, inválida isolada numa torre transparente, sequer posso descer, para vê-lo e tentar acalmá-lo.

Acho que somente Jonas reconheceria minha dor, assim como eu reconheço a dele tão bem. Sei o que é sentir haver perdido uma parte fundamental de minha vida. Sinto-me como um salmão preso a uma rede, que vê a sua família ficar para traz de si - eu sou este peixe e sou também o que escapou da rede. Sou o que sente perder o ente querido, estando ele próprio absolutamente perdido e o que perde o ente querido e se alivia por ainda estar vivo.

Não consigo pensar em outra coisa. Sou culpada por Jackson também? O que eu poderia fazer por Jonas que não fiz?

As perguntas têm resposta, e eu estou envolvida demais com este sequestro do Jackson que peço licença para sentir mais nada.

Estou vazia, estou morta. Felício... Jackson levou consigo a luz no fim do meu túnel, ou eu serei a luz no fim do túnel dele? Onde está meu amigo, onde está Jackson? A mão em meu abdome, o instante final e a triste história do menino cantor, de coração doente, sem seu grande compenheiro, evado infamemente por alguém que se julga apto a alterar a vida de um ser vivo, de quebrar um laço tão intenso e belo de interdependência.
Estou certa de que este rapaz irresponsável não enxerga para além do seu próprio umbigo. Não consigo ver um modo pior de se ser perverso. O que quer que eu tenha feito, o que quer que estas pessoas todas querem tanto saber de mim não é tão grave quanto isso, que este menino fez ao Jonas e ao Jackson.

Em respeito a isto e por reconhecer este como ponto máximo de deturpação das nossas relações conosco mesmos e com os demais outros animais, fico calada. Sinto todas as dores que me cabem, entrego-me a elas, deixo-me dilascerar por dentro, trancada com um segredo monstruoso, prestes a se revelar.

Num desses documentários que vi, havia uma chipanzé machucada: ela havia sido pega por uma armadilha que quase lhe arrancou uma pata. Ela continuava, perseverante e dolorida, o seu destino de ser elefante. Perdeu algo naquela armadilha, não sabe se continuará a sentir, pela pata machucada, as vibrações distantes que seus irmãos elefantes emanam pela terra; ainda assim, ela segue, ignorante de sua sorte, perdida e impelida pela única alternativa que lhe resta: continuar a ser, apesar das perdas.

Sou eu a elefante e sou eu a armadilha. Sou eu a pata machucada e sou eu a vibração que esta pata, provavalmente, não voltará a sentir.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Lontra

Desgraça pouca é bobagem.
Como assim, roubaram Jackson?!


Eu estive ontem atropelada novamente, meu corpo mal se movia porque eu estava catatônica. Veronika está comigo a todo o tempo, eu estou como que engessada, muito paralisada.
Entretanto, encontro nova energia para me segurar diante de mais uma situação de trauma. Sobrepôs-se a qualquer dor o sumiço de Jackson.

Os psicólogos queixaram-se a Veronika sobre minha fixação neste menino e seu cão. Eu fui repreendida veementemente por ela, quanto a me afastar deste "problema" do cão, o qual eu não estou em qualquer condição de resolver. Verdade, e justamente esta é minha aflição: não o poder encontrar e salvar.

Por que teríamos que perdê-lo? Quem, em sã consciência, pensaria ser melhor para este cão viver com quem quer seja, afora Jonas? Não poder conforontar esta prepotência é o que me atordoa.
Uma coisa é perder algo por um golpe do destino, outra bem diferente é perder algo importante por conta da atitude presunçosa de um adolescente humano sem qualquer responsabilidade para o ocupar, e sem pais suficientemente seguros para o impedir de fazer tal coisa.


Portanto, deixei que Veronika, os médicos, meus pais e todos os que se ocupam de me "recuperar" contivessem todas as preocupações cabíveis ao meu caso e vim aqui revelar que mechi meus pauzinhos para ajudar Jonas a encontrar seu companheiro: liguei para um segurança de meu pai e o fiz entrar em contato com Jonas e sua família, a fim de encontrarem Jackson.

Foi o que eu pude fazer para impedir que mais uma tragédia aconteça. Depois, eu me ocuparei de descortinar as sensações trazidas pela memória ainda turva, pelas visões horrendas de um braço que me envolvia o abdome, antes de eu sentir o caminhão chegar...

Oh, deixe-me tentar salvar uma família, compensar a mim mesma o mal que eu provoquei...
Não posso me negar a, antes de qualquer coisa, descobrir que EU provoquei um evento muito triste, que enche de amargura toda a raça.
EU estou tomada por um fluxo intenso de um azedume que me preenche toda, principalmente depois de me deparar com a iminência de outro acontecimento que poderá tornar pior a vida neste planeta: a morte de um cão cuja dominação parece alterar o sentido da "superioridade" humana sobre os animais.


Um cão que canta e, assim, junta-se a nós por laços inimagináveis pelo primeiro predador humano que pensou, "eu posso cercar e tratar esta cabra selvagem, controlar sua vida de modo a que ela me forneça alimento, a mim e aos meus, enquanto durar sua vida". Entre Jonas e Jackson não há controle, há interdependência, que é a base das relações na natureza.

Sinto-me oprimida por um mal da raça.
Sei que não terei para onde mais fugir e estou fraca.

O que quer que eu tenha feito não é pior do que o que este jovem faz de mal a Jonas e a Jackson. Ao tentar salvá-lo, estendo uma mão a tentar também salvar-me... de mim mesma.

Depois que eu souber que Jackson está bem e a salvo com jonas, estarei preparada para enfrentar meu drama, assim o espero. Até lá, quero mergulhar, como uma lontra, pela escuridão deste rio que flui e deixa à minha volta uma mancha verde escura e espessa, amarga e triste, a me mostrar que uma desgraça nunca chega sozinha.

SMS

GUTA,
ONTEM ROUBARAM O MEU JACKSON.
FOI MUITO RÁPIDO, EU NÃO VI O RAPAZ LEVA-LO.
NÃO SEI O QUE FAZER.
NÃO ESTOU ME SENTINDO BEM.
POR FAVOR, AJUDE-ME!

sábado, 13 de dezembro de 2008

Águia cobreira

A morte anuncia-se antes de chegar. Não se denuncia, porque ela tem o direito de ser Morte. Alguém tinha que fazer o trabalho difícil.
A quem cabe ordenar sua vinda, se por acaso sobre sua vontade couber qualquer ordem?

Eu escapei dela. Perguntaram-me hoje: "você estava sozinha na moto, aquela tarde?". Meu Deus, eles não me perguntariam isso, se eu estivesse sozinha. Alguém morreu naquele acidente.

Eu não sei o que pensar, o que fazer. Sinto vontade de gritar.
Eu vou gritar!

Eu não quero ver o que eu tenho que ver. Eu vou me contorcer nesta cama, sentir a forte dor e acentuá-la, certamente irão me anestesiar. Mesmo dormente, estarei como se pendurada por um gancho, uma Prometeu com a perna cravada de espinhos. Quero arrancar esses aqui com a mão.
Veronika chegará em minutos e eu estou acompanhada de uma enfermeira e os psicólogos em atitude vigilante, sentinelas de meu drama e da raça humana inteira. Todos perderam agora algo significativo em seus destinos. Não sou a única vítima.

Estamos todos de luto. A morte de alguém muito amado. A minha morte... Ah, preciso...

Sou a felina que perdeu seu filhote aos búfalos. Sou a rã comida pela cobra, por vigança do gafanhoto por ela comido antes. Sou a vítima e a algoz de minha própria desgraça. A leoa derrubada por um grupo de ienas.
A águia cobreira, que perdeu seu ovo a um abutre e observa a serpente que irá comer, para manter-se viva e deixar

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Ratazana

Eu também já tive um animal de estimação. Um cão, Tupã. Nome de Deus a um animal um pouco sisudo demais.

Eu me lembro de certo dia ter pensado que Tupã era um ser inútil. Ele não desempenhava, vivia apenas para comer e dormir.
Passei, por um tempo, a ignorar seus latidos e grunhidos, a achar que era vazia de sentido a sua ranzinzice atabalhoada demais para um pequenês. Mas, o que poderia dizer um cão que não aprendeu a fazer algo de útil ou engraçado?
No auge de minha juventude abastada e sem turbulências, deixei de rir de suas trapalhadas, perdi o interesse por seu chamado ao carinho e passei a discriminá-lo na presença da família e dos amigos.

Ele sentiu este meu distanciamento e também alterou seu comportamento... para com o mundo. Parou de comer, sentava-se no canto da sala, humilhado e largado à própria sorte.
Sim, eu o discriminei por ser inútil. Hoje, eu me pergunto se o amaria se ele fosse um Jackson. Eu rio, porque ele não era um Jackson, uma vez que eu não sou um Jonas.

Eu custei dias até perceber a angústia de Tupã, e para esta história não ser mais triste, ocorreu de eu ter sido a primeira a notar seu emagrecimento. Ninguém mais em casa se importava com ele.
Naquele dia, em que eu o mimei e o acolhi em meus braços novamente, eu percebi que ele merecia meu respeito por ser um velho cão imprestável que parecia ressentido pelo não reconhecimento de sua existência.
Afinal, pensei eu hoje, ele não chegou a ser um Jackson por minha culpa: eu não fui uma criança como Jonas.

Cresci privilegiada pela premissa do arbítrio, fui tocada pelo direito à fartura. Os animais, para nós, eram objetos valorizados pela sua função decorativa - como os cavalos da quinta, nos quais apenas meu pai e meu irmão montavam, pelo prazer de se sentirem mais másculos. Em casa, os dois cães que criamos faziam parte da mobília ou da nossa coleção de brinquedos.

O primeiro cão, Felix, foi anterior a mim e viveu apenas dois anos com meu irmão e fugiu. Tupã viveu conosco por doze anos. Morreu de um infarto fulminante três anos após o dia em que notei sua tristeza e lhe prometi companhia até sua morte, em respeito à sua maturidade de cão doméstico, vazio e ressentido.
Cumpri esta promessa e, depois dele, não criei nenhum outro animal; pesou-me aquele compromisso com Tupã.
Naquele momento, sentia-me atada por uma obrigação, hoje sinto-me envergonhada deste sentimento. Fui desrespeitosa e, cumprindo nosso hábito indecente, culpei o cão por sua prórpia escravidão.

Agora, estou eu cá sentindo remorso.
Remorso por haver mal-tratado Tupã, remorso por não conseguir ultrapassar esta dúvida e descobrir, de uma vez por todas, o que me falta lembrar da festa de aniversário de Felício.

Felício... Tupã, meus mistérios e minhas dores.
Hoje, sou novamente a caça. Sinto-me com a frivolidade inocente de uma rata, antes de ser abocanhada pela cobra e sou também o peixe a ser comido pela rata.
Sinto a dor dos que terão que se entregar.

Sou quem desprezou Tupã, sem perceber que a vaziez era minha.
Jamais caberia a Tupã adivinhar-se cão frente a minha humanidade presunçosa e idiota.
Ao contrário do peixe, que reconhece a ratazana e desta, que reconhece a serpente, Tupã deixou-se comer por uma certeza ancestral, segundo a qual para os cães - como para todos os animais, em princípio - seria vantajosa a dominação pelo humano.

Naquela tarde, Tupã explicou-me a sua perdição e a sua desonra. Eu admiti sua permanência em minha vida, contudo desmereci sua animalidade. Fosse hoje, reconhecer-mo-nos-íamos um no outro, como Jackson e Jonas, ou eu somente o ensinaria alguns truques e o levaria ao cooper de final de tarde?

Ah, se eu soubesse o que fazer com a obrigação de ser solidária, se eu houvesse aprendido a amar o que me cercasse, se eu conseguisse, ontem como hoje, enxergar algo para além de minhas pequenas necessidades, sim, com certeza, eu saberia responder ao que me perguntam os médicos e detetives. E Tupã seria a lembraça de um amor simbiótico e fraterno entre uma adolescente alegre e seu cão cheio de dúvidas.

domingo, 7 de dezembro de 2008

A escaravelho

Os recônditos e tortuosos caminhos da redenção: de ser abissal a escaravelho, exemplos de que a sombra é o reverso imprescindível da luz.

Tenho dormido bem mais que o usual, nos últmos dias, por isso tenho escrito e desenhado menos. Normal, dadas as pressões física e psicológica. A primeira, resultado do trabalho das placas de platina a fazerem seu trabalho de restaurar minha perna e a última pela cada vez mais constante cobrança de todos para que eu restaure determinada centelha de minha memória recente.

Então, pensei que provavelmente minha dificuldade resulta do fato de eu estar perdida neste trajeto em que me vejo transitar lenta e forçosamente, desde que acordei do coma, após o acidente.
Pelo que percebo do que vejo em minha própria situação, toda necessidade de que eu me lembre do que quer que seja deve-se ao fato de eu haver provocado esta desgraça. Estou sozinha, destroçada e dolorida por minha exclusiva responsabilidade. Sendo assim, eu me pergunto: o que guardará para mim o meu futuro, depois que eu descobrir esta cortina de minha memória?

Sonhei que eu estava dependurada pelos braços, a perna a pingar sangue e minha boca tapada por pano embebido em vinagre e sal. Ah, acordei fria de medo!

Com certeza, são estas sensações que me atordoam e me impedem de recobrar a memória. Não consigo facilmente, depois de senti-las, estabelecer qualquer raciocínio, ou ao menos consigo me ater à urgência de me lembrar... Tudo me apavora e, quando estou assim, completamente paralisada pela angústia, lembro-me de Jonas, Jackson e dos filmes sobre animais que há meses tenho assistido.

Juntos, eles formam a senha para que eu possa conseguir ultrapassar este imenso obstáculo feito de asfalto, sangue, dor e sombra.

Penso que a aproximação entre Jonas e Jackson seja uma artimanha do destino, para a redenção de ambos, porque a adaptação dos seres a este ambiente se dá de formas bastante distintas.
Se julgarmos as estratégias naturais para acomodação dos seres em seus destinos a partir de uma moral humana, podemos acreditar que haja nelas alguma injustiça ou imundice. Do mesmo modo que eu jugaria inaceitável o trabalho duro do menino e do seu cão, eu tenho o nojo como meio de comunicação com os seres que se posicionam no que para nós seria o último lugar na cadeia evolutiva. Penso nos abutres e nos escaravelhos.

O primeiro, necrófilo alado, oportunista, barulhento e feio é um alvo perfeito para nosso julgamento atroz. Sem ele, entretanto, o mundo já não comportaria toda a matéria decomposta, descartada pelos animais, em sua luta cotidiana pela sobrevivência.
O que seria das populações que por hora sofrem com uma terríel enchente, se não fossem os urubus a comerem a carne podre do gado morto no dilúvio? Até consigo escrever uma máxima: todo recomeço é incompleto sem o término do que foi iniciado antes.
Para que a vida permaneça na Terra, faz-se necessário o trabalho dos abutres.

O mesmo pode-se dizer sobre os escaavelhos. De todas as cores e tamanhos, alimentam suas larvas com excrementos. Se um búfalo confia no trabalho de um vira-bosta para completar sua digesão e ajudá-lo a cumprir sua obrigção para com o planeta, nós, humanos, sentimos asco, quando nos lembramos de sentir por eles alguma coisa.
Quão hipócritas somos! Estaríamos cobertos de merda, sem esses bichos que, ao se posicionarem neste patamar da cadeia alimentar tornam possível nossa permanência neste planeta, ao tempo em que se transformam, eles próprios, em seres imortais pela natureza de seus trabalhos.

Os milhares de anos utilizados pelo tempo para estabelecer esta teia de relações e interdependências são equiparáveis aos meses em que me encontro neste limbo forçado. Depois daqui, estarei em outro ponto da minha rede social, fomentarei outros sentimentos nas pessoas e terei que reaprender a viver.
E se eu acabar por ser alvo e um julgamento feroz? E se cortarem a minha cabeça pelo que quer que eu tenha feito? E se não houver justiça diante da consequência do meu ato?
Ah, o que eu perdi naquele acidente, além de minha mobilidade?!

Sim, hoje estou aqui, escarevelho levada pelas chuvas, a buscar calor na lâmpada acesa.
Minha lâmpada, Jonas e Jackson, são minhas luzes.
Confio neles para ultrapassar este ciclo de horror em que me encontro agora.

sábado, 6 de dezembro de 2008

SMS

Guta, como vai?
ontem e hoje foram dias bons para mim e minha família.
Estamos contentes e animados com tudo.
Parece que as pessoas estão mais generosas com a gente.
Amanhã, eu lhe ensino a fazer um cachorro ficar inteligente
:)
Vc é minha fada.
Bjo.
Jonas.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Ser abissal

Nunca chegamos à verdade sobre os fatos. Ao menos em minha sociedade... A dúvida é nosso pecado original ou o castigo até o apocalipse.
Continuam as imagens da enchente. Ao lado de guerras particulares, assaltos espetaculares e bajulações, predominam as informações sobre a tragédia. Compadeço-me da desgraça daquelas populações, porém não posso deixar de me envergonhar da nossa alienação sobre as reais causas das catástrofes naturais.
Sempre procuramos nos destacar da natureza e, no reverso de nosso compadecimento pelo semelhante, antevemos a nossa reação ignota: culpamos a natureza pela tragédia.

Sinto como se a humanidade vivesse numa amnesia semelhante a esta que me acusam de estar acometida. Ontem, a psicóloga repetiu que há algo de que eu não consigo me lembrar, daquela tarde do acidente. Faço esforço, procuro rememorar cada instante daquele dia e nada parece faltar.
A festa, o vinho, os amigos, a moto, o carro em minha direção e eu agora aqui... O que falta?

Veronika diz que talvez eu esteja complicando tudo. Ela acha que estas minhas elucubrações sobre animais são confusas e disse ainda que Jonas pode ter-me embaralhado toda por dentro. Como assim? Tudo faz tanto sentido na simplicidade desta criança.

Jonas conhece o segredo da boa sobrevivência. Digo, ele tem um mundo particular que se completa em si próprio. Ele e sua família são autônomos e solidários entre si. Como podemos considerar este modo de vida selvagem? Como não justificar o fato de Jonas trabalhar arduamente, mesmo com seus poucos treze anos e uma cardiopatia que pode matá-lo?
Viver e morrer para Jonas são a mesma coisa; ele está seguro de sua relevância neste seu mundo próprio. Ele acredita no futuro, nesta vida e para além dela.
Ele não precisa de nosso "sistema", ele está certo da predominância dos bons sentimentos. Ele sabe que, à parte deste nosso "sistema", nós somos confiáveis uns aos outros, na medida de nossas necessidades.

Sim, porque Jonas também sabe: o que comanda nossas emoções é o interesse e a satisfação de nossas necessidades. Por aquele e por estas construímos as nossas leis e, para escamoteá-los e permitir o direito ao mando por alguns contra todo o restante, redigimos as sacrossantas metáforas religiosas.
Para que mais serviria a religião, senão para nos fazermos aceitar a dominação política ou econômica?
O intrigante é que, ao erigirmos as nossas civilizações, transferimos distocidamente a nossa vida selvagem à nossa vida "social", em vez de termos conseguido evitá-la. Nossa selvageria é maior hoje, do que na era das cavernas, apesar de toda a tecnologia.
Aliás eu, escrevendo para um blogue, num alto de prédio, isolada do mundo apenas por paredes de vidro, com a perna destroçada, religada por aparelhos de platina, sou a última pessoa isenta para proferir qualquer blasfêmia contra as maravilhas da inteligência e destreza humanas. Devo a elas a possibilidade de estar viva. Por uma mordidela de filhote de tigre, um filhote de empala pode morrer, se tropeçar e cair na fuga. Porém, eu confirmo que a transferência é distorcida, porque destruímos a capacidade de defesa dos mais fracos: em nossas selvas, eles sequer podem fugir.

Veronika perguntaria: "o que isso tem a ver com sua situação? Por que não se concentra no que você passa agora?" Eu lhe responderia: deixe-me caminhar pelos meus caminhos tortuosos! Eu confio em Jonas e Jackson como minhas lanternas.

Estou como um ser abissal. Este aquário suspenso é minha fossa oceânica e há um outro ser que veio me emprestar sua luz, para eu percorrer esta zona escura. Este ser é Jonas e a sua luz é Jackson.
Eu, um peixe transparente, uma bolha biológica tenho agora, finalmente, a oportunidade de me ver. É preciso calma, eu não quero me arvorar a concluir o que quer que seja. O alívio que Jonas me traz , este conforto ao desobrir que tenho todo o tempo do mundo, eu quero senti-lo intensamente, quero experimentar desta calmaria aqui nesta planície submarina, onde me sinto pressionada e perdida, como se eu fosse um estrangeiro nesta área longíncua do planeta.

Devo agradecer ao tempo, que me trouxe Jonas e sua simplicidade salvadora. Deixe-me ir flutuano, aquecida pela luz que, dependurada em minha boca, torna menos aguda esta dor n'alma, esta bomba latente, este ardor submerso em meus sentidos.

Se houver saída deste vale escuro, serão Jonas e Jackson quem ma mostrarão. Não estou me desviando de meu destino, apenas quero compreender melhor esta dor abstrata , intensa e atordoante, antes de senti-la, inequivoca e arrasadoramente.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A hipopótama e a javali

A nossa ciência não vale uma gota de chuva.
Estou impressionada com as imagens de uma enchente na televisão. Ouvir lamentos de um repórter pela fatalidade, sendo que este não se lembra de exigir o reflorestamento que pode prevenir situações como esta. Teimamos em nos isentar das responsabilidades e em nos vitmizarmos, mas não somos inocentes, nenhum de nós o é.
Uma senhora ainda gritou, na reportagem: "olha o pato, coitadinho!" O pato estava dependurado, imóvel, com um galho a lhe atravessar o peito; ele e a árvore haviam sido arrastados pela avalanche.

Somos todos obrigados a cuidar de coisas, objetos a que damos valor e por eles nos comprometemos e aprendemos a julgar as demais pessoas.
Jonas e Jackson, sobre eles eu refleti: eu os teria julgado mal se os visse na praça. Sim, eu certamente sentiria algum asco e, piedosa, sentiria tembém grande angústia por não poder ajudar o cãozinho.

O que Jonas vem me mostrar é que este julgamento é parcial. Não se pode avaliar a conduta de alguém sem se conhecer a sua história e o seu ambiente social. Jonas e Jackson formam uma família, a partir de um sólido acordo tácito. Não falo de amor, refiro-me à assunção da mútua dependência, do mútuo interesse.

Jonas me envia mensagens pelo celular da família, há o carro da família... O irmão de jonas se casará, haverá um outro carro e um outro fogão para a família; os pais passarão a viver às suas custas e jonas se casará e haverá outro carro a substituir o de seus pais idosos.

Sobrinhos e netos espalhar-se-ão, formarão outras famílias e este cilco vem se repetindo há milênios, porém corre agora risco de deixar de existir, porque não admitimos o nomadismo e a vida livre de famílias profícuas e instituídas sob uma tradição que se perde na longa trajetória de ancestrais artistas mambembes que atravessaram continentes e se disseminaram pelo planeta. Jonas é uma centelha, a última folha de uma árvore frondosa.

Entregamos nossas potencialidades nas mãos de poucos de nós - meu pai dentre estes. Eu, filha de capitalista; eu, isolada neste quarto suspenso, com paredes de vidro e oxigênio controlado; eu, esta mulher envergonhada, descubro a simplicidade com que tudo acontece na vida.

A enchete, a caçada selvagem, dois fenômenos distintos, porque a primeira pode ser uma resposta aos nossos desmandos, a outra, não, é a amostra cotidiana e necessária da fragilidade da presa e do predador, a linha da interdependência, do equilíbrio.

Eu, com minha enchente particular, percebo a superficialidade deste espaço, de todas as minhas memórias e revejo o lugar do sentimento, das emoções.
Amor como eu amava é expressão de uma marca do meu tempo: assimilar a dependência em relação ao outro como uma obrigação. Poucos amores e amizades escapam desta triste regra: usar o outro para proteger a minha fantasia de natureza: eu, meus amores e amigos levando a vida, a vida barata, simplificada pelo dinheiro e pela sensação de haver nascido para o bem bom.

Agora, estou aqui, seca e afogada neste colchão d'água, acostumando-me às dores que passei a sentir e que sentirei pelos próximos anos, descobrindo que a minha história me torna inferior a Jonas e toda sua lógica familiar. A vaziez de minha existência deixa-me menor que Jackson.

Não sei onde isso vai parar, mas estou tranquila, apesar dos acontecimentos estranhos. Talvez sejam os remédios...
Hoje, esteve aqui nosso advogado de família e me fez assinar papéis, para me representar numa ação sobre o acidente. De que ele tratava, não me explicou bem...
Estou acuada, perseguida, abandonada. Sinto falta de Lúcio, já sei que ele não virá, algo mo diz. Estou tensa, uma hipopótama na jaula é levada a esperar por algo que ela suspeita nunca mais virá.

A javali, em cativeiro, transforma-se em porca, passa a comer o que lhe dão e a parir suas esperanças. Cada filho que ela expele poderia voltar a ser javali e, quem sabe... Não sabe mais, esqueceu-se a porca de sua juventude javali.

Eu espero, eu quero saber e descobrir. Como gostaria de haver parido Jonas e que ele nos trouxesse um Jackson! Contudo, não é assim, as pessoas são insubstituíveis. Jonas era algo necessário ao meu aprendizado.

Jonas é melhor que eu, Jackson me ensina a viver neste aquário, ele descobriu como se fundir ao outro e desta simbiose ocupar seu lugar no mundo. Tornar este mundo seu por meio de outro ser. E para esta realização não adiantam cálculos, ou regras. Há que se deixar educar pelos ditames da natureza.

Sinto-me ligada a Veronika e estou preparada para admitir que me interesso por ela, antes de a amar. Eu me sentia mais ou menos assim com um meu amigo... Onde está Lúcio? Por que ele não me vem ver?

sábado, 29 de novembro de 2008

A fome da leoa

Eu sou uma das que dariam moedas ao Jackson. Ou essas moedas seriam ao Jonas?! A Jackson e a Jonas também.

Estes dois formam uma parceria consentida e ensaiada, esses dois se amam como se amam duas leoas de um mesmo grupo, comprometidas uma com a outra durante a caçada e a criação dos filhotes.

Ao tempo em que estabelecem esta parceria, menino e cão estão encaixados num compromisso maior, como aquele que une as leoas ao seu grupo familiar: em torno de Jonas e de Jackson e do seu número de rua, há uma família pobre, unida e solidária. Vejo neste círculo de pessoas e animais um modelo de relação que poderia mudar sobremaneira o modo como convivemos com os bichos.

Se considerarmos que a sociedade humana e sua intervenção sobre a natureza é uma fato sem possibilidade de retorno, poderíamos pensar em meios de dominação que não usurpasse o bicho, mas que lhe permitisse até, quem sabe, usufruir das maravilhas de um mundo humano repleto de inovações. Por exemplo, Jackson, que aprendeu a cantar e é feliz por isso.

O respeito de Jonas por ele e o favorecimento recíproco entre ambos, para mim, é um sinal de que seguimos um caminho evolutivo errado, em que subjugamos os bichos, a partir da presunção de que somos, de algum modo, superiores.

A história de Jackson com Jonas remonta à infância de ambos. Enquanto um aprendia a tocar acordeão, o outro aprendia a colocar seu uivo numa canção, ao tempo em que ambos aprendiam a aprender e a ensinar. Jonas se refere a jackson como um amigo, um companheiro de trabalho, um mestre. Ele diz que Jackson é do tipo de cão que quase fala, no que eu lhe disse que ele é um cão que canta.

Porém, há sempre um infortúnio e, neste caso, o tempo nos mostra a cara desta dor iminente. Se os treze anos de Jonas ainda pode ser considerado uma criança, Jckson, por sua vez, aos treze anos é um velho. O cão está perto da morte e Jonas tem um desafio terrível pela frente: encontrar e ensinar o canto a outro pequeno fihote de cão.
Ao comentar sobre isso, hoje aqui, no hospital, Jonas perdeu a voz. Para ele, é quase impossível desvencilhar sua rotina da rotina de Jackson. O que ele vai fazer? Começar tudo outra vez. Ele me disse que a cadela França, neta de Jackson, dará a luz filhotes nos próximos dias e que, desta ninhada, surgirá - ele tem certeza - o substituto de Jackson.

Como é anacrônico ouvir uma criança feito Jonas falar sobre morte! Esta palavra em sua boca ganha contornos carinhosos, ele se refere a ela em voz baixa, por respeito ao seu grande companheiro. Eu senti profundamente a dor que se esboça no coração de Jonas, compreendi-a e constatei que ela vai muito além da perda financeira que esta troca poderá provocar em sua família.

A morte é também outra companheira de Jonas, o que provavelmente o faz sentir a sua própria ao se referir à morte do seu amigo canino.

O novo filhote terá o dom de compreender o lugar e a função do seu uivo. Ele precisará descobrir o significado de sua música e encaixá-la no significado da música de Jonas.

Há uma inteligência submersa na mente do animal, a qual Jonas poderá despertar, quando testar com seu novo parceiro o método que sua família utiliza, há gerações, para tornar este sonho de parceria possível. Ao adestrar deste modo seus filhotes, esta família parece anular a dominação pérfida que permeia a nossa relação com os demais bichos.

Por isso, Jonas não sente culpa ou medo da morte. Jonas sabe que não há nada porque se preocupar, porque a morte e a vida são verss de um memso poema, não há mistério. A história de sua família lhe revela que os laços de amor são eternos e que as parcerias vitais, como a sua e a de Jonas, os acompanhará aonde quer que biegem seus espíritos. Jonas demonstra que a bondade gera a liberdade de se sentir pacífico diante das curvas da vida. A morte para Jonas é, na verdade, algo de que ele não quer ou precisa escapar.

Eu, do meu lado, ao vislumbrar as marcas deste acidente, sinto-me péssima. Eu sei que sou responsável por cada minuto de dor, por cada fincada lanscinantge, por cada vez que sou abordada por um médico ou psicólogo a me perguntar sobre algo de que me esqueci... sou, inclusive, responsável pro ter que receber, neste estado, policiais, que querem investigar minha intencionalidade...


Veio-me à mente a constatação de que eu daria moedas ao jonas por sentir culpa por não ser como ele.

Ah, meu Deus, como me sinto atormentada por este sentimento de responsabilidade! Como eu gostaria de alterar este acontecimento e reverter esta dor na alegria livre que Jonas sente com sua inocência, do mesmo modo que eu gostaria de compreender e aceitar que não há intenção maudosa na caçada das leoas famintas ao filhote de búfalo.
De um modo misterioso para mim, o amor de Jonas por Jackson equivale à fome da leoa pelo búfalo.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

ovo

Faço um enorme esforço para escrever agora.
Senti mais dores que o normal nos últimos dias, escondi esta piora dos médicos e fui uma infecção "absolutamente evitável" levou ao aumento da dosagem dos remédios, que aumentam meu sono e este gosto amargo e espesso em minha boca.

Portanto, desde ontem tenho a sensação de estar preenchida por um limbo de desolação, como um quarto tomado por fumaça.
No sermão que recebi do ortopedista, descobri que este aparelho infernal parafusado à minha perna ficará comigo por mais dois anos, pelo menos. Ah, meu destino próximo será de extrema provação!
Mal acordei e vieram os psicólogos, um casal sorrateiro e risonho, a insistir sobe minha memória. Pela primeira vez, senti que o que eles me escondem é algo muito grave, ou serei eu que lhes escondo realmente alguma informação? Eles sempre chegam a fim de saber deste algo e eu nunca lhes entrego nada concreto.

Eu não consegui lhes falar sobre outra coisa, a não ser sobre minha mais nova descoberta, sobre a razão de eu ter tido forças para suportar a dor que aumentava dia a dia, sobre esta luz que estampa alguma alegria no futuro obscuro que se desenha à minha frente.

Jonas surge em minha vida de modo a justificar tudo de bom e de ruim que me possa ocorrer de agora em diante. Jonas serve para que eu tenha fé na humanidade, na possibilidade de que o bem algum dia prepondere sobre a maldade. Jonas é doce e ele é cercado de amor.

Até seu irmão, um rapaz de dezessete anos, que volta e meia me pede algum dinheiro para isso ou aquilo, parece ser uma boa pessoa e cobre o irmão com cuidados e carinho.
Ele ficou muto feliz quando soube que eu pagaria pelas despesas do tratamento de Jonas e pela cirurgia. Talvez por isso ele me peça algum dinheiro, e também pela suntuosidade deste quarto. O certo é que eu o neguei sempre e deixei claro que minha ajuda se restringirá às custas do tratamento.
Somos nós, com a arrogância e a presunção, quem estragamos as pessoas simples. Negar-lhe o dinheiro é preservá-lo... de mim?

"O que significa Jonas para você?", perguntou-me a psicóloga. E eu respondi: um ovo. Sim, ele plantou algo em mim que parece ser uma fonte inesgotável de esperança.
Jonas faz toda esta história do acidente fazer sentido. Jonas mantém-se vivo num mundo que não é feito para pessoas como ele, ele tem um dom e esse dom o conecta à sua família; ele trabalha, aos treze anos, com um cachorro adestrado, que o acompanha desde muito cedo; Jonas trouxe-me a certeza de que eu poderei ficar bem. Ele desmoronou um pouco meu mundo de crenças.

"Há alguém mais que lhe cause esta sensação de bem-estar?", perguntou o seu parceiro. Custou-me responder algo, eles continuaram a insistir, até que me caiu uma ficha: Lúcio. Sim, este meu amigo sempre soube me colocar bem, diante de fatos adversos. Se Jonas tem o olhar, Lúcio tem a palavra e o abraço.
Contudo, Lúcio veio sequer me ver, será que ele me esqueceu?

Hoje, este é o maior mistério em minha vida, saber o que terá acontecido a Lúcio. Não consigo me lembrar de aluma briga entre nós, nem de algo que pudesse te-lo feito partir. Ele não comentou sobre qualquer proposta de trabalho no exterior, aliás, ele estava envolvido num projeto sobre arquitetura urbana nacional... O que terá acontecido a Lúcio?

Não acho que Jonas venha a preencher a falta que meu amigo me faz. Jonas vem a somar beleza à minha vida e seria muito bem acolhido por Lúcio, com certeza. Jonas tem aquela candura dos filhotes de tigre, o atabalhoamento atrevido de um pequeno chipanzé, a inteligência e a alegria de um elefantezinho aos pés de sua mãe.

Jonas faz a dominação humana
usual sobre os animais parecer ainda mais cruel.
Jackson tem o privilégio de haver sido amado por Jonas e com ele ter aprendido a viver em segurança. Jackson, que, de início pareceu-me explorado e vilipendiado é, na verdade, um cãozinho especial elevado à condição de artista por um menino sereno e doce.

Qualquer tragédia se torna num acontecimento simples com a presença de Jonas. Para responder àquela pergunta da psicóloga, eu diria, Jonas significa o fim de toda e qualquer culpa em mim.
Jonas é a porta pela qual eu poderei passar com segurança. Ele e Jackson são, hoje, essenciais à salvação de minha alma despedaçada.

SMS

26/11/08 09:16
GUTA,
ESTOU FELIZ D+ POR TER CONHECIDO VOCÊ.
ESPERO QUE VC ESTEJA BEM
E QUE SUAS DORES MELHOREM LOGO.
JACKSON ESTÁ ANSIOSO
POR CONHECER VC TBM :-)
ATÉ AMANHÃ.
BJO,
JONAS.
***

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

O orangotango e a Leoparda

Ainda escrevo com dificuldade, com a mão esquerda. Mas, tenho todo tempo do mundo, enquanto estou acordada.
Estou absolutamente só com a minha dor.
Às vezes, eu a desafio, faço movimento como que para provocar a dor. Entretanto, minha perna precisa doer. Nos poucos momentos em que estou acordada, preciso sentir dor. É a única maneira de eu e os médicos termos certeza de que o que restou dela ainda está vivo.
Desafiá-la, contudo, é uma expressão de raiva minha.
Claro que não posso ir muito longe, mas basta a tentativa de levantá-la para que eu sinta uma pontada longa e atordoante.

É uma dor que me atravessa em todos os sentidos. Eu já não grito, sinto-a com dignidade. Os médicos não notam o que faço, pois não tenho forças sequer para movê-la um milímetro para cima...
Não consigo explicar esta dor, nem meu gosto por esta reação idiota ao que me ocorreu, na medida em que ela não consegue me acordar para a vida.

E meu trabalho? Eu sei desenhar? Ao se ver o meu corpo, não se imagina que seja o corpo de uma hábil desenhista. Minha mão pesada de hoje mal delineia uma linha num papel branco... Conseguirei, com o tempo, me lembrar de como era? (Do que eu tenho que me lembrar?)

Jonas... Que suavidade este menino! Como sua pureza me anima a continuar vivendo, eu o farei herói! Vou financiar seu tratamento completo, decidi-o hoje. Ele poderá crescer, escolher seus caminhos, adestrar outro Jackson, quem sabe? Ou quem sabe um arquiteto renascerá com meu gesto... caridoso?

Não, eu farei isso por se tratar de Jonas, o menino que me trouxe luz, que tem um cão maravilhoso que canta com ele, que vem de uma família de artistas pobres, que viaja pelo mundo a teimosamente sobreviverem da única atividade que sabem desenpenhar. Juntos, a bonecos ou animais.

E o ajudarei porque eu precisava, há quase um ano, de uma resposta para a minha angústia existencial e esta resposta me veio por ele e Jackson. Vejo que eu estava premonitória e que minha ansiedade era para conhecê-lo. Tive que chegar aqui, perder minha perna, quase morrer para conhecer este menino, Jonas. Sou-lhe grata e lhe retribuirei o favor com sua vida. Sua vida pela minha.

Uma retribuição é uma troca. Eu poderia achar meu sentimento egoísta, porém mantemos nossas relações pelo interesse e precisamos admitir isso. A parceria é um contrato, quase um negócio, o que torna uma parceria diferente de determinada outra é esta ponte aberta aos sentimentos, que extravasa e alcança o outro, transcendendo o valor do favor em si, assim surge a amizade.

E nesse curso de coisas também se dá as relações entre os bichos. Não há apenas a força físicá, há também o interesse. Em suas formas mais elementares, em situações em que mesmo os bichos se comportam em desacordo com as reações que ele próprio espera de si.
Por exemplo, eu vi uma imagem impressionante num documentário hoje. Uma fêmea leopardo já na fase da emancipação, numa de suas primeiras caçadas, captura uma fêmea orangotango e a leva ao seu esconderijo, numa árvore. Ao ajeitar a sua comida no galho, vê que algo inesperado acontecera: ela deu a luz um bebê macaco.

O que ela fez? Deixou de lado o corpo da mãe e correu a tentar manter o filhote na noite fria.
Ele a procurava como mãe e ela o acolhia como tal.
O que a fez agir assim, um evasão repentina e precoce à abnegação do amor materno? Eu penso que ela viu ali uma vida acontecer pelo nascimento daquele pequeno e indefeso animal.
Isso não estava no roteiro, ela não sabia que isso poderia ocorrer. Diante do impasse, a inexperiente caçadora optou pela acolhida, aquele filhote estava mais próximo dela do que o desejo de comer a carne de sua mãe. Ela apenas conhecia o valor de sua vida de filhote, não saberia fazer outra coisa àquele bichinho que teimava em continuar vivo, depois de nascer naquele remoto galho de árvore.

Além do que, lembrou-se daquela fuga de um macho orangotango que, adulto, poderia matá-la num lance. Ela era um filhote e foi poupada pela astúcia da mãe, que chegou e a levou a sob o tronco de uma árvore desabada. Naquela noite, não parecia ter-se reconhecido na posição contrária.

Preservar o filhote orangotango não seria um meio de se aliar ao oponente? Talvez não, talvez fosse mesmo a sua consciência a aconselhando a cuidar; os filhotes, antes da caça, aprendem a viver. Ela tentou trocar sua vida pela do filhote.

O pequeno orangotango morreu de frio e machucado pelas desastrosas tentativas da leoparda de aquecê-lo. A felina, por sua vez, comeu a carcaça da mãe e abandonou, no galho da árvore, o filhote morto que não conseguiu criar.

O que eu vou fazer com Jonas é o contrário desse ocorrido entre dois animais tão díspares. E exatamente por serem tão distintos guarda suas semelhanças. Eu preciso manter Jonas vivo para fazer, como a leoparda, minha vida fazer sentido de agora em diante; porém, ao contrário dela, eu não tenho necessidade de me alimentar de Jonas, ou de Jackson, mas sempre fui ameaçada pela visão de sua vida, a qual me acalenta tanto hoje.

Será daí que nasce o amor? Farei isso por Jonas... por amor. Igualmente, amor a ele e a Jackson e a todos os cachorros que porventura vierem a ser abençoados com a companhia deste garoto absolutamente maravilhoso.

Não aguento mais escrever... Há pouco, veio a enfermeira, me viu a escrever e perguntou se era alguma revelação o que eu escrevia. Eu ri, e disse, sim, muitas revelações. Por dentro, chamei-a cínica.

Estou há quase uma hora escrevendo estas linhas, como me são difíceis cada uma delas.
Jonas veio amortecer esta dor interna e esta dificuldade física.
Eu o amo e falaria sobre ele por horas, mas a enfermeira me traz a mão impiedosa que me tapa os olhos, um remédio infernal direto na veia, que me toma aos poucos e me dá condição apenas de fechar a tampa do computador, para que ninguém leia o que eu venho escrevendo.
Admito que lançar mão destas sensações pela escrita me ajuda bastante, embora nenhuma revelação, tão desejada, me tenha ainda surgido por aqui.

Jackson

Acabo de acordar. Agora, são duas da manhã, Veronika dorme tranquila no reservado instalado no quarto, com uma cama, para ela estar comigo nestas noites tranquilas de hospital. Veronika é a pessoa no mundo que mais me compreende e ontem ela me deu mais uma prova disso.

Quando veio me ver, no fim da tarde, Veronika encontrou um carro velho cheio de cachorros e logo se interessou pelo que via, uma vez que sabe de minha fixação por bichos. Ela, então, aproximou-se do carro e lá estava um rapaz, sozinho, guardando os cães e demais pertences. Ao saber pelo rapaz que se tratava de apetrechos de um grupo mambembe e que no hospital estava o seu irmão, que sofre de uma doença congênita no coração e que trabalha na rua, acompanhao de seu cão, Jackson, ela logo pediu para que este rapaz no carro lhe apresentasse à sua família, já pensando no quanto me faria bem conhecer esta criança e sua arte.

Foi então que me surgiu no quarto um menino adorável, Jonas. Aos 13 anos, Jonas é arrimo de família. Seu número consiste em tocar um acordeão e, ao cantar, ser acompanhado pelo seu velho pequenez a uivar. Jonas fala sobre sua arte com grande emoção e pureza, contudo seu olhar é triste, por conta de sua limitação de saúde.

A cada quinze dias, Jonas vem ao hospital, para exames cardíacos de controle. Seu coração bate fracamente e ele espera sua vez de realizar a cirurgia que poderá salvá-lo deste sofrimento. A despeito desta sua doença, ele é um menino esperto, inteligente e muito, muito talentoso. Adorou saber que eu sou ilustradora, quis ver meus desenhos, interessou-se por tudo. Ele me disse que gosta de desenhar e que pretende estudar arquitetura.

Entretanto, sua vida não lhe garante esta oportunidade. A escola não é um espaço frequente em sua educação, tanto por conta de sua doença, como pelas suas responsabilidades em relação à sua família, que viaja constantemente e vive em grande penúria a maior parte do tempo.

O número de Jonas e Jackson é o mais lucrativo, mais até que os malabarismos com poodles que seu irmão, o rapaz do carro, executa. Em relação ao teatro de bonecos que seus pais encenam, então, é que a arte de Jonas se mostra absolutamente indispensável ao sustento desta família.

Eu quis saber de tudo sobre sua vida e sobre sua relação com Jackson. Do alto de sua inocência, ele me disse que Jackson é o cão mais artista que ele e sua família já conhecera e que ambos aprenderam juntos este ofício. Perguntei-lhe como os cães eram treinados e ele respondeu, simplesmente, "eles é que querem aprender. Jackson mesmo, diz meu pai, não saia de perto do acordeão, quando era filhote. Eles nascem pra isso".

Foi como se eu despencasse de um abismo. Como assim, "eles nascem pra isso"?! Eles não são forçados a aprender?, perguntei-lhe. Ele responde que, de jeito nenhum, os cachorros apanham. "Só aprende a cantar aquele que leva jeito e que se aproxima de nós pela própria vontade. Tem que estar no sangue o talento, senão, não tem surra que dê jeito. É como nós, em nossa família todo mundo é artista, vem no sangue."

Jackson então tem talento e vontade. Ele parece ter assumido seu lugar nesta família e suas razões podem parecer estranhas para todos nós, mas não para Jonas. Ele acredita que os cães são os melhores e mais inteligentes amigos do ser humano e que eles, os cães, podem aprender quase tudo porque, embora não falem, conseguem pensar quase como os humanos. Para Jonas, seu cão é parte de sua família e seu carinho ao falar dele sugerem que o respeito é elemento essencial desta relação.

De repente, tudo se reacendeu em mim, apesar das questões veementes e claras que simultaneamente se me revelaram: o comportamento de Jackson seria mais uma faceta da evolução natural? Haveria uma trégua na nossa relação dominador-dominado com os animais? Não seríamos assim tão maus ao implantarmos este sistema hierárquico na natureza, submetendo os animais à nossa vontade?

A inocência e a força de Jonas me abriram uma porta. Acordei tranquila, como se ele pudesse me guiar por esse momento obscuro. Este menino gracioso conhece a dor, a pobreza e o amor de um modo como pessoas como eu jamais poderão conhecer. Marcamos de nos reencontrar amanhã, Veronika pediu à mãe que o deixasse visitar-me diariamente, como um meio de ajudar em minha recuperação. Ela aceitou, sem pedir nada em troca.

Estou completa e felizmente fascinada por Jonas, sua família e sua história. A grande pena é que não verei Jackson tão cedo. Animais não podem entrar em hospitais de humanos.

sábado, 22 de novembro de 2008

Mãe-ave-marinha

Meus períodos de sono têm durado mais de doze horas. Acordo a qualquer tempo e acabo por enontrar os mesmos poucos companheiros, por vezes dormindo, do meu lado: ou minha mãe, meu pai, ou Veronika ou os amigos mais íntimos, aos quais eu pedi que esperassem minha chegada em casa, para voltarem a me ver. Meus irmãos falam comigo online, ainda bem que o fuso deles encaixa em minha agnda irregular.

Lúcio não apareceu por aqui e eu fiquei um pouco magoada com ele. As desculpas pelo sumiço variam: minha mãe disse-me que ele viajou a trabalho, Veronika refere-se apenas a uma viagem, Beth já mencionou uma catapora persistente... Algo de misterioso há nesse desencontro. O que terá acontecido ao meu melhor amigo, para ele não vir me visitar no hospital? Não esperava por isso, ser abandonda por Lúcio. Sem falar na insistência de todos para que eu me lembre de algo que eu não sei minimamente o que seja.


Parti, então, em busca de pistas.
Passei a reler os textos que eu havia publicado aqui, anteriormente. E o que eu vejo: um pessoa a beira de uma revelação, confusa pelas mensagens que o tempo lhe plantava nas sensações; a minha náusea era uma premonição?

O que parece-me claro é que eu estava obcecada pela fatalidade. E os animais me servem muito bem a isso. Porque eles agem e reagem somente diante da necessidade, eles se mantêm obedientes aos ditames da natureza.

Quando se sentem ameaçados, fogem, por medo de não cumprirem sua função maior no mundo, a reprodução. O que muito me impressiona neles é o fato de cada um, assustador ou assustado, ocuparem um lugar e cumprirem uma função na chamada seleção natural.
Não consigo sentir pena dos que são caçados, mesmo das crias, porque eles têm nesta caça uma oportunidade de redenção da espécie.

Por exemplo, os Gnus. Em sua longa jornada fugindo do frio e da seca, atravessam rios, onde são atacados por crocodilos; em terra firme, há os lobos, os leopardos, os leões, as chitas e as hienas. Muitos morrem na boca de uns e de outros bichos, mas estas mortes são sacrificiais, no sentido de que a morte de uns permite a sequência da jornada da grande manada.

Somente é triste o fato de os mais fracos e jovens serem as presas prediletas, por serem mais vulneráveis. E isso nos mostra a dor dos que ficam, sem suas crias, ou sem seus pais.

Vi uma cena num dos filmes documentários que me tocou profundamente. Uma mãe-gnu é atacada por leões, que a comem e deixam somente a carcaça, que depois será aproveitada por abutres. Ali, ao seu lado, diante do cheiro da mãe dilapidada, uma cria berra agora insistente e esperançosamente.
Impressionante ainda estar viva, mais cedo ou mais tarde, seria comida por hienas ou lobos, já que os leões da área saciaram sua sede com a mãe corpulenta.

Cortou-me o coração aquele berro de filhote a chamar por uma mãe morta.
Vi muitas cenas como estas e o contrário também ocorreu: mães e chorar pelas crias mortas e mães a lutar inutilmente contra leões para salvar suas crias. Na verdade, presumo que haja um código secreto entre os animais, que tornam esses acontecimentos compreensíveis por eles, como se uma mãe soubesse que, dentre seus filhotes, boa parte deles cairá sob patas ou dentes maiores e mais fortes.

A manada segue em frente e aquela mãe entrará novamente no cio e dará a luz outro filhote, que poderá também morrer numa caçada e assim é a sua vida.

De repente, ao reler os textos e ao sentir a falta do meu amigo, percebi que agora minha náusea premonitória tornou-se num caminho reto e seguro, de modo a eu me identificar sobremaneira com os dramas dos animais. Contudo, quando ultrapasso o cenário da floresta e visualizo os abatedouros, os maus-tratos a que submetemos aqueles animais que conseguimos domesticar, vejo o quanto fomos vis em relação às ordens naturais, o quanto, por meio dos animais, aprimoramos nosso sadismo e nossa presunção doentia de superioridade.

Isso me entristce, como humana que sou. Não sei exatamente meu lugar nessa lógica que persigo há quase um ano. Agora, presa aqui, a olhar, ora para um remanescente de floresta, ora para a cidade e seus sinais de miséria e opulência, pergunto-me:

onde eu me encaixo, na cidade?
O que eu perdi é o que agora me projeta tão proximamente aos bichos e suas dores ou fui trazida por estes?
Quem sou eu nesta trama?

Onde está Lúcio para me apontar uma suposta verdade e me fazer enxergar, com suas próprias atitudes, que nesta vida tudo é passível de justificativa, que o importate é se deixar ir com a vida?

Eu, que sempre fui uma mulher contente, que sempre fiz o que quis e que sempre fui amada, nunca senti a amargura do abandono, ou da perda. Contudo, vejo agora que eu, ainda que não o soubesse, preparava-me para adentrar por esta porta, para contemplar o mundo por enormes paredes de vidro, com cortinas. Eu me preparava para me comunicar com os animais e descobrir... o quê?

Ainda bem que o meu caminho até aquela mãe morta e sua cria perdida está facilitado pela minha própria morte. Não sei o que restará do mundo a esta nova Guta. Novamente, sou uma menina a descobrir as possibilidades, desta vez limitada pela dor e pela incerteza.

Sim, sou uma mãe-ave-marinha, de um outro filme, que vê seu valioso ovo ser levado pelo abutre, a despeito de seu esforço para detê-lo. Sim, sou esta mãe, que chorou longamente e me mostrou, pela televisão, seu olhar lacrimoso e mais triste, muito triste.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A tigresa solitária

Em todos os cantos deste quarto de hospital há um fantasma olhando para mim: o espectro criado de minha própria história, com esse desenlace furtivo e estarrecedor.

Puseram-me sozinha num grande quarto, com três paredes de vidro. Ao se entrar pela porta, à esquerda, vê-se parte da floresta preservada, ouve-se dela o cantar de pássaros, a música dos sapos e grunhidos, que parecem vir de pequenos macacos. À frente, a floresta vai dando lugar à cidade, seus edifícos e, à noite, preponderam suas luzes e buzinas, até que, pela parede da direita, vê-se apenas a balbúrdia de trens, caminhões e o subúrbio distante.

Sim, sou rica. Meu pai é um industrial, riquíssimo. Minha mãe é de família aristocrata e trabalha como professora de Letras. Com minha carreira, nos últimos anos, enriquecemos também, eu e Veronika. Tenho o capital suficiente para me instalar nesse quarto enorme, que faz minha convalescência parecer uma temporada num hotel-fazenda.

Nunca me senti mal por ter dinheiro, porém, agora, sinto-me deslocada, como se a raiva sentida hoje pela manhã tivesse se tornado numa fonte de egoísmo incomesurável. Sinto-me sozinha no difícil trabalho de me proteger e de me manter sã por dentro.

Eu tenho consciência de que há quem sofra mais do que eu estou sofrendo com este acidente. Há homens, mulheres e crianças pelo mundo que esperam longos anos por uma cirurgia mais simples do que as que eu tenho feito para reparar a mnha perna. E sei que muitos morrem sem socorro, após acidentes bem menos graves do que o que ocorreu comigo. Contudo, não consigo mais ser solidária a dores alheias.

Estou isolada e vitimizada por esta escuridão que cobre minha memória, que me faz sentir uma idiota todas todas as vezes que os psicólogos me pedem par me lembrar de algum detalhe desde a saída da casa de Beth, ou quando eles me dizem que há algo importante de que eu não consigo me lembrar. Por que os fatos não se revelam a mim? Não seria mais fácil eles me descortinarem logo este mistério?

Ah, que se danem! Que me deixem viver esta solidão em que eu me joguei. Porque EU bebi vinho na festa de Lúcio, EU peguei minha moto, EU a guiei desatentamente, EU ultrapassei um sinal e EU me esborrachei no chão. EU virei este ser quase inválido, EU tenho uma perna partida em cinco, EU não sei o que me espera e todo o dinheiro que EU tenho não me livrou nem me livrará de qualquer sofrimento.

É por isso que o fato de ser rica me parece um direito agora, como se eu e minha família tivéssemos acumulado dinheiro para usufruir dele neste momento ruim. Eu me sinto como uma fêmea suricata dominante. EU posso e quero poder ao menos sentir esse colchão d'água me consolando neste espaço de vidro, neste aquário ostensivo, nesse deserto de escorpiões, lagartos e serpentes trasitando em minha mente e em minhas entranhas.

Sou EU quem precisa de lembranças, ou de algum sentido. Porque se antes eu não me envergonhava por ser rica, agora eu penso que tudo isso me serve apenas como consolo. Portanto, nem posso me vangloriar de ser dominante, ou matriarca do que quer que seja, porque estou só e porque, entre nós humanos, a dominância se estabelece sem qualquer lógica; ela se estabelece apenas porque conseguimos obter mais e mais vantagens uns sobre os outros. Será isso o que nos faz tão inábeis: sermos julgados pelo que obtemos e não pelo que somos?

Que seja! Importa-me saber que minha vida foi traçada para que eu estivsse aqui e agora. E eu preciso desse quarto de hospital luxoso e de vidro, desse colchão d'água e dessa televisão enorme e eu os mereço.

Que eu não seja como a suricata matriaca, que eu seja apenas uma macaca inferior, mas oportunista. Que eu seja uma tigresa solitária, sem filhotes, a procura de caça no período seco. Importa-me saber do que eu perdi; a diferença está em descobrir o que vem a me ensinar esta reclusão e esta perna quebrada.

Estou sozinha no mundo e não há motivo para puxar da memória uma imgem sequer. Prefiro esquecer minha pretensa superioridade e ressaltar minha necessidade de estar pronta para o que quer que a vida me traga a partir de agora.

A raiva da pomba

Sinto a raiva triste das gazelas em meio a uma caçada de leopardos. A raiva desconsolada da lula abocanhada pelo tubarão.

A raiva sem remédio, a raiva dos injustiçados, a raiva dos mais fracos.
Sinto queimar em mim um remorso auto-comiserado por minha perna partida, por este ambiente hospitalar no qual eu tive que ser instalada, isolada, mantida compulsoriamente, como numa torre de sacrifícios.

Sinto a raiva do veado abocanhado pelo crocodilo, o ardor da raiva do cardume inteiro de sardinhas rodeado por um cardume de golfinhos famintos. Sei agora o que é estar dominada e obrigada a dar à vida um destino insólito.

E ainda este remorso estanho e sem justificativa aparente, uma sensação de que perdi alguma coisa grandiosa. Porém, deve ser assim mesmo: na boca da fera a escuridão envolve o corpo e a alma do animal caçado, de modo a não lhe restar um recanto íntimo preenchido, por algo que não seja um vácuo de medo, incerteza e dor.

Sinto a raiva da pomba capturada no ar por um gavião, em plena metrópole.
Sinto a raiva da ratazana comida pela serpente, multiplicada pela raiva da serpente a ser pinçada pela água serpenteira. Sinto agora a raiva dos que vão, incapazes de reivindicar outra alternativa. Fui pega, caçada, deglutida. Rebatizo-me: Guta, a dilacerada.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

O vôo da pinguim

Venho de um coma.
Consigo dizer apenas que eu sofri um acidente terrível, durante a festa de aniversário de Lúcio. Eu não me lembro do que aconteceu. A minha última memória é a do carro vindo em minha direção.

Agora, estou num hospital. Meu fêmur direito se quebrou em cinco lugares e eu perdi massa óssea nessa perna. As informações são tantas e tão excessivas! Estive mais de dois meses em coma, quebrei a clavícula e trinquei a bacia, estas agora já estão melhorando. Escrevo com certa dificuldade, mas não sinto muitas dores, porque estou com os estímulos de dor controlados por fortes anestésicos.

Há seis dias, senti uma pontada lanscinante, que me subiu por todo o corpo e eu apenas gritei. O médico depois me explicou que eu devo ter sentido dor ao longo de todo o coma; que, embora a dosagem de anestésicos fosse alta, não superaram a força da sensação dolorida, que emanava de minha perna destroçada. Enquanto eu vagava por vales escuros, meu corpo produzia uma dor aguda a qual eu sequer sentia. Agora, para confirmar que estou viva, preciso sentir dor, como um silêncio incômodo e suportável.

Estou assistida por uma equipe que comporta desde médico ortopedista a nutricionista, passando por psiquiátra, três psicólogos e dois fisioterapeutas. Todos estão orientados a me puxarem a memória, extrair alguma informação que eu não faço idéia qual seja. Vieram aqui dois investigadores policiais, que me fizeram o favor de descrever o que ocorreu naquela tarde de início de agosto.

Disseram-me que fui lançada a quase dez metros do local do acidente. Disseram também que eu tinha algum álcool no sangue e disseram que muito sangue rolou pela avenida. Disseram-me que eu atravessei um sinal amarelo e que fui pega por um carro que não freiou enquanto vinha em direção perpendicular. Perguntaram-me se eu me lembrava com quem saí da casa de Beth e, claro que eu saí sozinha de lá.

Lembro-me de estar animada para pegar um dos nossos filmes da faculdade em minha casa, lembro-me do vinho - logo eu, que não sou ligada a bebidas - lembro-me de ouvir Veronika pedir para eu não sair e me lembro do cachorro de Beth, que latia com olhar fixo em meu olhar. Latiu alto e claro, acho que agora sei o que ele queria me dizer. Não me lembro de outros detalhes, minha lembrança pula deste ponto da ação na casa de Beth à exata hora em que o carro se chocou contra mim e eu voei, mas não me lembro de ter voado...

Se voei, não o fiz como uma águia, uma pomba, ou uma beija-flor. Fui lançada ao ar, como uma senhora pinguim perseguida na enseada por um leão-marinho e jogada às pedras por este, para desgrudar sua pele e facilitar a ele o acesso à carne suculenta. Porém, não havia leão-marinho, não era comer a minha carne que se queria neste evento.
Minha carne escapoliu com o choque do meu corpo no chão, minha perna está mais fina, minha memória é literalmente um fio obtuso.

sábado, 16 de agosto de 2008

Sábia Mamba

No próximo sábado, será o aniversário do meu melhor amigo, Lúcio. Faremos um almoço, na casa de Beth, sua irmã. A casa ampla, mais parece um clube, serve bem à nossa fome de diversão. Há um cinema na casa, uma piscina e os filhos dela, sempre fofos. Lúcio convidou os primos e priminhos e a festa vai ser mesmo animada. Para mim, será ótimo, sinto como se fosse sentir um pouco mas de paz nesse dia.
Não me lembro da primeira vez que nos vimos, porque sentimos um pelo outro aquele tipo de amizade em que não se olha para trás e, quando se resolve ver o que passou, surgem já os anos com ecos de sorrisos, choros, conselhos e confidências. COnheço cada detalhe dasua vida e vinha triste com ela, por conta do seu casamento com S. Esta festa de aniversário de Lúcio será a primeira, desde 2004, em que ela não comparecerá.

S. é uma mulher que consegue desestabilizar as relações mais antigas e sólidas. Ao menos o nosso círculo de amigos ela conseguiu dissolver por algum tempo. Passamos a nos ver apenas em eventos e festas de aniversários.
Nesse período, Lúcio mudou muito, tornou-se num workaholic que frequentava pizzarias às quintas para estar com os colegas de S. e suas famílias, e que viajava aos fins de semana com ela, para conhecer um lugar novo, fotografar (o que era bom!) e também produzir fotos dos dois posando, enfadonhos, em fotografias que só interessavam a esses amigos da pizzaria. Isso, quando não viajavam juntos, num fim de semana. Uma coisa que não entendo: como um fotógrafo da qualidade de Lúcio posava para aquelas fotos?

A sorte é que eu e ele nos vemos com frequência, porque ele é fotógrafo. Encontramo-nos sempre em reuniões de trabalho. A nossa amizade superaria a blindagem de S., até porque foi ela quem me apresentou Veronika, quer dizer, apesar de a detestar, eu sempre mantive com ela uma relação de cordialidade.

É que ela não deixava ninguém à vontade no apartamento deles e isso enclausurou um pouco Lúcio. Por outro lado, ele ficou mais concentrado, trabalhou mais e fez uma pequena fortuna, ao lado de S.. Ou seja, o que quer que ele tenha encontrado nela, fazia-lhe bem e por isso eu a respeitava. Mas, vamos combinar, ela era uma cobra entre a gente.
Uma cobra... resolvi vir aqui escrever depois de meu encontro com Lúci hoje, entre a tarde e a noite. Comentamos sobre o seu aniversário de 29 anos, sobre as nossas antigas namoradas, sobre o colégio e sobre sua "Fase S".

Hoje, quatro meses após se separarem, ele me disse: "três anos com uma cobra". Inadmissível isso! Eu lhe perguntei se ele estava vedado, amarrado ou amordaçado, quer dizer, ele que viveu esse tempo com ela...
"Ela é uma pessoa incrível, ela consegue fazer todos os momentos prazerosos ou dramáticos e, por isso, muito bonitos e tocantes. Não pense que eu sofri ao lado dela, pelo contrário, fui feliz, mas deixava passar muita coisa. Até que me acendeu uma luz... Mas, que saber, agora sim me sinto pronto para a mulher-mãe dos meus filhos.".
Eu ri do jeito como ele falou essa barbaridade, "mulher-mãe-dos-meus-filhos", mas era convincente. Ele é, na verdade, um romântico.

Viemos para minha casa juntos, Veronika nos preparou um cozido de carne de porco com legumes e depois, empanzinados, nos sentamos diante da televisão. Fiz o meu teste de tolerância, meu procedimento básico com as visitas, nessa minha crise, digamos assim: passei para o canal mais leve de documentários sobre "vida animal" e esperei as reações.

Lúcio e eu não acreditamos quando vimos o tema do filme: a Mamba Negra Africana. Veronika, ao notar nossa concentração, disse, a seu jeito engraçado, "eu não acredito que vou ter que aturar isso!", porque ela já conhecia meu ritual de 3 horas vendo aqueles "filmes sobre bichos".
E ela fica ainda mais brava quando eu paro no canal pessimista, que associa os bichos aos guerreiros, ou aos assassinos frios, tornando sua refeição num "festim". Esse canal que víamos, não, era mais holístico, as abordagens eram até mais científicas. Eu o chamava de canal leve, porque otimismo é ingenuidade e nossa geração já não pode mais reclamar que não sabe das coisas.

A Mamba Negra é a segunda maior serpente e tem o veneno mais letal dentre elas. É ainda a mais rápida, tem esperança de vida de mais de dez anos e não está ameaçada de extinção. Alimenta-se de roedores e aves. A Mamba Negra Africana...
O documentário consitia, basicamente, no exibicionismo de um biólogo de meia-idade, que capturou uma Mamba e mostrou à câmera sua língua rocha. A fina e enorme cobra enrolava-se nos braços do patético apresentador. No momento que ele deve ter considerado o clímax narrativo, ele perguntou, infame: "por que um veneno tão forte para se alimentar de animais tão pequenos?"

A verdade é que a Mamba Negra desenvolveu a melhor defesa num mundo cruel. Sim, tanto veneno para se proteger de quem vier comê-la, ou roubá-la. Sempre soube que não estava sozinha e que não deveria facilmente confiar nos que tinha em volta, inclusive podia esperar quase tudo de sua própria espécie, acostumada ao canibalismo. Aprendi esses detalhes num outro documentário sobre serpentes. Ou seja, eu tinha o arsenal para manter a conversa, especialmente a partir do ponto em que S. rodou em nossas bocas. Um tribunal se instalou.

Para variar, Veronika trouxe a sentença: "nem do ponto de vista prático, nem teórico, consigo ver apenas a maldade na Mamba Negra, assim como acho que S. é uma pessoa extraordinária, apesar de muito insegura e vingativa. O que temos que aprender é a fazer como a Mamba e expressar a raiva antes de atirar-se ao bote, para dar chance ao outro de tomar seu caminho. A Mamba Negra é, na verdade, a mestre com quem S. e todos nós temos muito a aprender."

Concordamos, eu e Lúcio. Tomamos sorvete na noite quente, combinamos a festa da semana que vem e ele foi pra casa, meu amigo querido, mais em paz com S.. Eu fiquei, e procurei por esta paz. Perdoei S. e perdoei a mim mesma, porque eu posso ter sido a outra criatura, de quem a mamba negra aprendeu a sentir receio e a fez, geração a geração, desenvolver o tal veneno terrível.

A mensagem da Mamba no entanto é clara, como foi a de S., tempos atrás, ao comentar: "Lúcio, esses seus amigos não sabem onde fica a esquina mais próxima." É péssimo isso, aquilo nos atingiu, ofendeu, afastou nosso amnigo de nós, mas vamos lá, cada qual somos cá umas cobras. S. me suportava, claro, pela presença de Veronika, avalizando para ela a minha existência em seu "meio", mas a atenção era regrada e cheia de incovenientes formalidades.

Eu a detestava e agora vejo que ela, no tempero desse veneno maldito por mim e por todos, nos mostrava uma verdade áspera sobre nós mesmos e que nos fez, sem que soubéssemos, mudar em direção a uma vida mais produtiva, o que envolve os lados bons e maus deste estado de coisas.
Neste momento, sinto que passo por uma crise de pessas "produtiva", à moda S., mas esta crise tem a ver ainda mais com minha habilidade em lidar com o que me envolve e me obriga. Só me dou bem com Veronika prque ela tem a mesma limitação e procuramos nos superar, uma apoiando a outra.
Ainda não compreendo bem as razões e os conceitos de S., mas acho que não lhe tenho mais nenhum ressentimento. Liguei a Lúcio e lhe pedi para que a convidasse. Senti-me mais leve e vim escrever. É engraçado como estamos tão intimamente ligados aos animais, seja um passarinho ou uma cobra. Presa e predador, ambos conhecem a terra tão bem como o mais sábios entre nós, humanos. Ambos nos são tão... úteis?!

Pela primeira vez desde que comecei este blogue em que pouco escrevo, senti algum alívio. Contudo, esta sensação maravilhosa e fresca aumentou o medo esquisito que tem me apertado o coração. Novamente, as contradições de minha náusea. Tudo para ser feliz e nada me alegra.

domingo, 20 de julho de 2008

A vaca e a fila indiana

Este descompromisso em escrever neste blogue agrada-me. Toda a minha vida é cercada por responsabilidades, que é bom saber que tenho um espaço em que eu posso despejar minha náusea, em paz e sozinha, somente quando eu o quiser.

Continuo com sensações intensas e estranhas sobre a vida. Retomei minha rotina anterior e já aparecem mais e mais oportunidades de ganhar dinheiro - parece que minhas férias forçadas despertaram qualquer curiosidade a meu respeito. Sorrateiramente, chegam muito interessados em mim, ao tempo em que todos parecem me esconder alguma coisa.

Verônica diz que estou paranóica, que a causa desta súbita procura foi a publicação da nova edição da revista "Agora", para a qual eu fiz todo o planejamento gráfico. Ficou mesmo linda, vendeu muito e meu nome está novamente sob holofotes. Mas, eu sou paranóica: outra vez, eu, diante de uma situação propícia para a felicidade, sinto-me cabreira. Esta palavra engraçada... é isso mesmo, estou cismada e continuo extremamente sensível.

Mas, tudo se agrava em conjunto com a realidade de um ponto de vista contrário ao meu, de mulher humana. Esta racionalidade sobre a convivência dos animais e nós, humanos, tem-me deixado muito emotiva, tornou-se no canal pelo qual eu verto lágrimas. Minha mente considera os animais como centro da crise, escamoteia alguma informação, que permanece adormecida, mas ronrona e usa suas unhas em minha carne toda, órgãos, tecidos. Sonhei com sangue. Um sangue animal, acho eu.

É um modo de fuga, talvez. à tardinha, começo a relembrar cada cena, cada palavra, cada imagem de bicho que eu tenha visto no dia. São muitas informações, mas diariamente todas estas imagens e textos confirmam a minha suspeita inicial, que me entristece: como raça, somos um fracasso.

Eu me questiono por que fomos tão incapazes e concluo o seguinte: faltou-nos a humildade de considerar cada ser vivo e mineral como parte essencial do nosso projeto de supremacia. A vaidade e a presunção maculam nossa performance, sempre. A competição impossibilita-nos de conviver uns com os outros e a ganância nos isola de tudo e todos. Já abrimos-mão do encontro, da surpresa. A cultura da cera, do artificial, da ficção do amor.

O amor... Clicou-se uma luz, quando viajava do interior para cá, ontem: uma fila de vacas encaminhava-se a uma pequena casa, numa fazenda rente à estrada. O clique:
o que as levava a andar tão organizadamente não era uma ordem emanada de fora, ou uma obrigação gerada por um contrato; elas andavam enfileiradas por amor a si e, por conseguinte, ao grupo e à raça.

Estranho falar em amor, raça e estranho falar em grupo, porém o modo como a minha náusea se faz entender por mim é pela situação dos animais no mundo em que eu vivo. Por que acreditar que somente os humanos sabemos aprender? Nós somos tão perversos...

É estúpido pensar que a possibilidade de culto ao simbólico nos eleva à civilização. Cada conjunto de seres da mesma espécie, em intensidade e influência maior ou menor sobre o ambiente, estabelece igualmente entre si e com o planeta as mesmas interações que a nós são tão caras. Porém, a quem rezariam as vacas, por que rezariam, se o seu mundo não parece lhes oferecer um mistério vital?

Elas andam em fila, porque assim não se perdem umas das outras, defendem-se melhor de ataques e mantêm o fio da comunicação aceso e dinâmico. Porque elas são sábias e esta sabedoria é de todos, vacas e bois. Basta se nascer bovino para saber.

Todavia, a fila pode indicar que é preciso também se querer ser bovino para so saber ser. Assim sendo, aquelas vacas revolucionaram suas ordens individuais e passaram a se conduzir em fila e a seguirem juntas na mesma direção. Tornaram-se una ao longo da evolução. Pastam juntas, comem juntas. Haverá um mundo espiritual da vaca? Será? Acho isso muito intrigante e me pergunto se não é pela vaca que a fila se chamaria indiana.

Nossa, quer dizer, o povo indiano cultua a vaca por sua superioridade, só pode! Assim, em vez de fila indiana, deveríamos dizer fila bovina. Daí se vê o quanto usurpamos dos animais em nosso benefício e eu calculo a nossa dívida para com eles. E se não os tivéssemos que comer, domina-los-íamos? São perguntas sem resposta e nelas reside o grande, o incomensurável mistério da nossa longa história em comum com a vaca e dessa minha angústia permanente e quase indescritível, apesar da felicidade aparente.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Passarinhos


Inspirei-me nesta imagem para desenhar o conde de Gloucester: Diante da ameaça, um passarinho abre as asas com coragem, o outro encara indignado.

Dividimos tudo com os outros seres, especialmente as expressões. Estes dois poderiam ser os príncipes da torre e o que vi nesta fotografia me fez pensar: nossa intervenção no planeta é benéfica ou assassínia?

O certo seria mantermos distância, ou qual convivência seria possível, se não preferíssemos roubar-lhes as penas? Como um predador reage a faces como estas? Seríamos considerados predadores por estas ararinhas azuis?

Os príncipes encarcerados antes da morte, tal qual o poderiam ser esses dois.

Somos animais fantasiados em pessoas - criador encarcerado em sua própria criação.
O pássaro diria 'eu sou pássaro'? E o que isso significaria? Pensaria um desses dois ser mais relevante para a sua espécie que qualquer outro?

Até que ponto vai a nossa animalidade?

terça-feira, 29 de abril de 2008

Porco, hiena e canja de galinha

Finalizei o desenho do corredor. Meu sogro me disse que uma águia o guiou até a clareira natural. Percebeu que ela sequia algo, parava, dava pequenos rodopios no ar, aproximando-se. Como se soubesse que em breve teria comida. Desenhei esta águia, a girar sobre a cena. No canto da imagem, o caçador, com a arma em punho, sob uma árvore para vigiar a clareira onde parou a águia, vê os dois veados descerem a pequena encosta. Um verde escuro predominante, com um cobre nos caules das árvores, feito sombras... Ficou bonito, porque ficou lúgubre. O céu é púrpura, a águia imprime movimento à imagem e reflete a luz branca e quente do sol indefinido daquele fim de tarde.

Os meus sogros adoraram e eu vou ficando na companhia deles. Percebo que somos até parecidos em muitos aspectos, mas as diferenças entre nós é que animam a nossa relação familiar. Prescrustam minha vida com Veronica, com discrição e humor. Gosto muito deles.

A sogra tem pensado muito na sua morte. Aos 64 anos, descobriu que a partir daqui, o que viver agora é lucro. Quer aproveitar enquanto ainda está neste mundo. Meu sogro a olha, como se lhe pedisse que não morra antes dele e eu penso sobre como eles começam a decifrar o mistério da vida.

Para mim, a morte é uma performance do corpo, durante o desencarnar do espírito, e vale dizer que eu admito que os animais tenham alma e espírito e que vivemos para além daqui, em outras formas e sentidos. A perspectiva da experiência única da morte é marcante a todos os animais, contudo, ao fim da vida, a morte não é um desencanto, como diz minha sogra adorável.

As minhas expectativas sobre a morte devem resumir-se na minha crença de que o espírito mantem-se vivo e carrega consigo nossas idéias e emoções e nossas memórias. Meu misticismo começa a se construir e minha sogra é grande responsável por esta transformação.

A morte do corpo só me é tocante porque receio sentir dor. Contudo, não sei o por quê de sacralizarmos o corpo? O porco tem a mesma fisiologia interna que a nossa e matamos cada vez mais porcos. Ao ver assim, ou se esticar mais o pensamento, poderei perceber que este ato de comer um ser vivo anima, matá-lo em série, para alimentar a espécie, é o inferno comum a todos os animais carnívoros. O que eu acredito é que: a humanidade coletora e monogâmica criou a nossa desgraça.

Por que não estamos dominados por uma ideologia agrícola e equilibrada? Porque mesmo a agricultura é danosa, se tivermos que allimentar a tantas bocas. E dentre os primeiros animais que domesticamos estava o porco, anatomicamente tão próximo.


Ao matarmos e comermos um porco, devemos saber que ingerimos orgãos e tecidos muito, mas muito parecidos com os nossos. Vai ver é por isso que comemos tantos porcos. Não quero um coração de porco em mim, mas sei que ele poderia se encaixar entre meus pulmões. E eu como porco, portanto, estou longe da santidade que agora proclamo para mim. Minha vida após a minha morte, se hoje, certamente seria desastrosa.

No entanto, quero em mim coração de ninguém, só o meu. Se ele for bom, vivo mais 90 anos, se for mediano, mais 60, se for fraco, vivo mais 30, e se não prestasse já teria morrido. Mas, esse modo de dizer isso, esse cinismo tosco, esse 'vai-se indo' já indicam que sei nada sobre mim mesma e parece que sigo vivendo por uma sorte imodesta, um norte sempre a construir. Estou neste intenso fluxo de emoções díspares.

Preciso ser por mim responsável e o outro por si mesmo... porém, a vida nasce quando eu proponho estar com o outro e ambos sabemos que, no final, poderemos não morrer juntos. Como uma hiena perdida no deserto, que encontra um grupo matriarcal que passa a integrar, mas sabe que precisa fazer por merecer continuar ali.


Pergunto-me, este laço precisa ser compreendido racionalmete? a hiena pensa? E quando caça, o que ela sente? Por que esse mistério sobre a morte de um corpo? E a morte do porco material e espiritualmente semelhante a mim?

Outra coisa: q
ual o sentido da classificação? No fundo no fundo, toda criatura da terra classifica, aceita, tolera, detesta coisas e coisas ao seu redor. Com seus sentidos incríveis, os animais comunicam-se veementemente e a violência só é mais usada como linguagem nas "relações" entre predadores e presas, como leões e búfalos.

Eu sei que viverei um ápice desta "crise" e que será algo que eu não poderei descrever em palavras... preparo-me para isso. Como a presa está preparada para a morte nas dentadas rasgantes da hiena.

Ando mística, se soubesse de alguém que lesse cartas, pediria para que lesse nelas um destino para mim. E parece-me tão obscuro, meu destino...

Meus dias em casa são sempre muito lentos e rotineiros, sinto-me extremamente desconfortável, como se eu fosse uma estranha em meu próprio lar. Aqui, na casa dos meus sogros, tem sido ótimo. Verônica veio na quinta e ficou até a segunda, sempre trabalhando, mas tudo bem. Temos conversado muito, ela me ajuda pelo simples fato de rir para mim. Lá, não temos tido tanto tempo uma pra outra, ela continua no trabalho, a toda. Os seus pais têm sido amáveis e vivemos um momento de grande harmonia. Meus pais virão amanhã e eu acho que estou realizando um sonho de toda pessoa, mas não me sinto feliz, apenas confortável.

O mundo faz tanto sentido nesta simplicidade interiorana. Rio todo o tempo com eles, transmito amor e recebo amor todo o tempo, de pessoas que se importam comigo. Estou muito sentimental, Veronica tem razão.

Ainda bem que tenho desenhado muito. São as formas vivas que me incitam ao movimento. A minha expressão pessoal tem sido minha terapêutica, neste momento em que o mundo parece querer marcar-me a pele, o espírito, a alma, com estas repentinas angústias pós-almoço e pós-jantar, que me fazem desenhar, dormir, acordar, andar a cavalo, vislumbrar o nada... De repente, um homem passa e, depois de horas, vê-se mulheres e crianças, mas então já se está próximo à vila. Voltar à casa, acarinhar os cães, tomar banho, jantar uma canja de galinha e desenhar, desenhar, desenhar.

será que eu não conseguiria ser vegetaqriana?

terça-feira, 22 de abril de 2008

O veado

Uma espingarda. No quarto onde eu dormi na casa dos meus sogros caçadores há uma espingarda, que por minha causa foi retirada da parede. Esperava por ela o vazio sobre a cômoda. Uma estrutura sem formas assusta-me, tal qual uma arma. Eu, nessa de escrever, quis pintar toda aquela parede com palavras. A sogra riu e disse que não, porque não combinaria com a espingarda.

"mas se quiser desenhar na parede do corredor, da sala aos quartos, eu deixo." Eu lhe propus uma selva. "Ai, adoro! Dá pra fazer em dois dias?" E eu, descarada: ou fico logo mais dois pra acabar, ou volto pra terminar. Meu sogro riu. Rimos todos.

Decorreu-se em dois dias uma enxurrada de acontecimentos, sob nuvens densas, chuva fina e nevoeiro pela manhã. À frente da casa, um descampado, nos fundos o quintal e a estrada, adiante. Meu sogro conhece aquele espaço como poucos e gostava de viajar à caçada. Conheceu "muitas paragens", com essa paixão. É famoso entre os caçadores, "pela sua arte".

"nas selvas onde eu caçava, tigres, leões, leopardos, jaguares mantinham-se do nosso lado, competindo conosco. Caçávamos as mesmas presas que eles, com o tempo devastou-se tudo, muitos bichos se perderam, por esporte dos homens, e esses gatos enormes foram perdendo seu território de caça, extermínio em cadeia. Naquelas tardes de caça, eles pareciam, muitas vezes, espectadores de um teatro e, por outras, tinham sede do nosso sangue. Muitas onças morriam por mãos de caçadores, mas eu nunca cacei por esporte. Matei um jaguar macho que veio me atacar, uma vez, matei-o para não morrer. Tenho por ele muito respeito. O que eu fiz com a carcaça? Vendi-a, é verdade." Meu sogro deixou cair a mão no espaço vazio à sua frente, como se dissesse, "acabou".

"comi tudo que cacei. O objetivo era um caçador abater um animal, o amigo outro e voltarmos pra casa, reunir a família, fazer uma festa, ela bem sabe. Nos conhecemos numa festa dessas, ficamos noivos noutra, nos casamos na seguinte, e nosso filho nasceu na próxima. Mas, o segundo já nasceu no inverno e depois dele começou-se a escacear a mata e a festa. Com os anos, outra selva, empesteada de gente, e suas festas." Ele ri, quase sozinho, não fosse o sopro alegre da sua mulher.

Minha sogra faz crochê e é perspicaz. Adorável mulher simples, com a altivez que me encanta. Ama Verônica, ama-me por que amo a sua filha. Ela me desafia para perceber meu amor, cada vez que falamos sobre ela, no início nunca esotu à vontade ao seu lado. Aos poucos, caem as amarras, ficamos juntos, a passar um bom tempo a conversar.

Na sala, há um troféu: a cabeça de um veado macho, lustroso, com sua galhada, na parede há vinte anos. A espingarda que o matou fica no quarto de héspedes, que tem ares de estúdio e deve ser a sala de estar dos sogros, quando sozinhos. Pedi para ficar nesse quarto, sempre que vou com Verônica ficamos hospedadas ali, sem a espingarda. A casa conserva grandes móveis de madeira, couro nos sofás da sala, nas almofadas. A pele do veado é a peça central da tapeçaria.

Minha sogra é uma mulher interessante, uma mãe avassaladoramente boa. Impossível não a amar. Do tipo de gente que parece plena. Minha sogra é uma mulher dourada, discretamente jovial e suntuosamente rainha. Os netos a adoram. As noras e genros idem. Neste fim de semana não foram lá os netos e ela me disse, assim que cheguei: "vamos estar sós nesse fim de semana, surto de gripe entre os netos, têm que ficar longe do avô.

Meu sogro é um tipo aparentemente ranzinza, mas com uma risada sonora e cheia de prazer. Ele diz coisas muito engraçadas, tem uma visão radical, mas é compassivo, sabe viver. Andou meio mundo, "a passeio ou em caçada", e quando menino embrenhou-se na mata que vai sumindo com a história dos humanos da região. Seu mundo compoe-se naquele espaço e nas memórias das viagens. Nos últimos anos, conforta-se que tem um carro que o leva aos filhos, e que "muito raramente" voa. Ele diz que, aos sessenta, tem visto a "terra nua". Gosto de ouvi-lo falar...

"ando a cavalo tudo isso aqui e não vejo diferença... é só pasto ou plantação. Tenho que ir bem longe pra ver a ponta da mata. Bicho?! Nem raposa... Sumiram todos. Acho que acabou tudo. Não sou responsável por isso sozinho, mas tenho minha parcela de culpa. Ajudei a derrubar muita mata, criei gado, plantei café. Eu ainda me lembro que a meninada ia até ali, na baixa, banhar-se no rio, passear na borda da mata, subir nas árvores, comer as frutas. Paisagem verde, profunda, linda.... A gente foi crescendo, ela foi ficando cada vez mais longe e eu só dei por mim aos sessenta. Os netos mais novos não sabem o que é uma mata e eu senti vergonha ao mostrá-los o que restou, o pouco que ficou."

Sentado, com um dos pés apoiados na poltrona, um homem magro, a lançar o braço no ar, gesto pesadamente vivaz, falava de suas viagens. Os animais são sempre personagens em seu drama. Eu sabia que com eles teria a oportunidade de pensar melhor sobre este emaranhado de palavras em minha mente... Porque o pesadelo de ser bicho tem justificado a minha dor. Vergonha, fixação e indignação sobre o modo como somos arrogantes, todos nós temos sido assim, eu, meus sogros, Veronica, meus pais, quem quer que seja. Vi o quanto eu sou violenta e minha súbita náusea encontrou plano fértil para tornar-se numa sensação acoplada à minha personalidade, a partir de agora, eu acho.

Todos os animais são tristes. E somente se apercebem disso no fim da vida. Semeamos tristeza e pavor e nos tornamos nessas duas coisas. Meus sogros estão também visivelmente tristes, embora estejam bem e se amem como sempre. Comentei com eles sobre minha náusea. Minha sogra pediu apenas para eu não me drogar e meu sogro, "isso me veio há cerca de nove anos. Veio cedo para você." E pipocou: "ainda bem que Verônica gosta de você". Senti-me salva. Minha sogra o abraçou e afagou. Ela, pequena e gorda, fica gloriosa junto do seu homem. Ele, então, contou a história da caçada aos veados.

"foi bonito, porque eu estava muito próximo a ele e via que ele estava há mantendo uma conversa com um outro. É sério, eles não estavam ali para comer, nem lutar. Apenas o via, nos primeiros minutos, movia a boca, parecia falar. Escolhi caçar os veados, porque são rápidos, exsigem muita destreza, mas eu realmente tinha o veado na ponta da lança. Mas não o matei ali, a caçada começou depois, precisei ser ágil e meus amigos comemoraram. Esse trofeu é premiado."

"Eu estava lá, totalmente concentrado nele e ele tão ocupado com sua missão, que não me viu, nem sentiu. Eu estava junto a uma árvore, há menos de vinte metros dele. O tiro certeiro, a grande sorte de um caçador de veados, mas não. Ele havia descido a encosta a correr, o outro depois, mais devagar. Pararam ali e ficaram a olhar-se, este fazia movimentos com a cabeça e soltava pelas ventosas. O outro fazia bem menos barulho, o que me deixou inseguro."

"Eles ficaram bons minutos ali, eu não conseguia atirar. Até que vi o outro corço, quando ele se deitou. Estava mesmo mal, era um ansião à beira da morte, que iria se deixar ficar próximo àquela árvore em que eu estava e simplesmente morrer. Estava claro o que significava aquilo, entende? Eu mataria o veado que acompanhou o ansião ao seu lugar de morrer. "

"Subiu-me uma dormência, escorreguei o pé, o jovem viu-me e saiu a correr. O velho custou a se levantar. Eu não poderia perder aquele belo veado, o belo trofeu, mirei-o, ele corria em linha reta, virou para a esquerda e eu o acertei, no dorso. Morreu quase mesmo ali. O velho berrava, conseguiu forças para me atacar, veio um meu companheiro da caça e o abateu. Busquei o jovem, fiz esse troféu, este tapete e ainda guardo a espingarda com que o matei. Quando meu primeiro neto nasceu, contei-lhe esta história e enxerguei esse lado das coisas... eu matei o indivíduo levou seu ansião ao lugar onde morreria. É um anjo, entende? É um anjo!"

Passamos boas horas olhando a face daquele principe lindo, morto no apogeu, quando descobriu o mistério e o disse ao ansião. Pisávamos na pele de suas costas.

Após jantarmos um peixe assado, comecei a pintar. De manhã, já se podia ver as formas na parede, da sala ao fim do corredor: uma clareira na mata, o caçador vê os veados chegarem para uma derradeira conversa. Voltarei na próxima semana para finalizar este painel.