sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A tigresa solitária

Em todos os cantos deste quarto de hospital há um fantasma olhando para mim: o espectro criado de minha própria história, com esse desenlace furtivo e estarrecedor.

Puseram-me sozinha num grande quarto, com três paredes de vidro. Ao se entrar pela porta, à esquerda, vê-se parte da floresta preservada, ouve-se dela o cantar de pássaros, a música dos sapos e grunhidos, que parecem vir de pequenos macacos. À frente, a floresta vai dando lugar à cidade, seus edifícos e, à noite, preponderam suas luzes e buzinas, até que, pela parede da direita, vê-se apenas a balbúrdia de trens, caminhões e o subúrbio distante.

Sim, sou rica. Meu pai é um industrial, riquíssimo. Minha mãe é de família aristocrata e trabalha como professora de Letras. Com minha carreira, nos últimos anos, enriquecemos também, eu e Veronika. Tenho o capital suficiente para me instalar nesse quarto enorme, que faz minha convalescência parecer uma temporada num hotel-fazenda.

Nunca me senti mal por ter dinheiro, porém, agora, sinto-me deslocada, como se a raiva sentida hoje pela manhã tivesse se tornado numa fonte de egoísmo incomesurável. Sinto-me sozinha no difícil trabalho de me proteger e de me manter sã por dentro.

Eu tenho consciência de que há quem sofra mais do que eu estou sofrendo com este acidente. Há homens, mulheres e crianças pelo mundo que esperam longos anos por uma cirurgia mais simples do que as que eu tenho feito para reparar a mnha perna. E sei que muitos morrem sem socorro, após acidentes bem menos graves do que o que ocorreu comigo. Contudo, não consigo mais ser solidária a dores alheias.

Estou isolada e vitimizada por esta escuridão que cobre minha memória, que me faz sentir uma idiota todas todas as vezes que os psicólogos me pedem par me lembrar de algum detalhe desde a saída da casa de Beth, ou quando eles me dizem que há algo importante de que eu não consigo me lembrar. Por que os fatos não se revelam a mim? Não seria mais fácil eles me descortinarem logo este mistério?

Ah, que se danem! Que me deixem viver esta solidão em que eu me joguei. Porque EU bebi vinho na festa de Lúcio, EU peguei minha moto, EU a guiei desatentamente, EU ultrapassei um sinal e EU me esborrachei no chão. EU virei este ser quase inválido, EU tenho uma perna partida em cinco, EU não sei o que me espera e todo o dinheiro que EU tenho não me livrou nem me livrará de qualquer sofrimento.

É por isso que o fato de ser rica me parece um direito agora, como se eu e minha família tivéssemos acumulado dinheiro para usufruir dele neste momento ruim. Eu me sinto como uma fêmea suricata dominante. EU posso e quero poder ao menos sentir esse colchão d'água me consolando neste espaço de vidro, neste aquário ostensivo, nesse deserto de escorpiões, lagartos e serpentes trasitando em minha mente e em minhas entranhas.

Sou EU quem precisa de lembranças, ou de algum sentido. Porque se antes eu não me envergonhava por ser rica, agora eu penso que tudo isso me serve apenas como consolo. Portanto, nem posso me vangloriar de ser dominante, ou matriarca do que quer que seja, porque estou só e porque, entre nós humanos, a dominância se estabelece sem qualquer lógica; ela se estabelece apenas porque conseguimos obter mais e mais vantagens uns sobre os outros. Será isso o que nos faz tão inábeis: sermos julgados pelo que obtemos e não pelo que somos?

Que seja! Importa-me saber que minha vida foi traçada para que eu estivsse aqui e agora. E eu preciso desse quarto de hospital luxoso e de vidro, desse colchão d'água e dessa televisão enorme e eu os mereço.

Que eu não seja como a suricata matriaca, que eu seja apenas uma macaca inferior, mas oportunista. Que eu seja uma tigresa solitária, sem filhotes, a procura de caça no período seco. Importa-me saber do que eu perdi; a diferença está em descobrir o que vem a me ensinar esta reclusão e esta perna quebrada.

Estou sozinha no mundo e não há motivo para puxar da memória uma imgem sequer. Prefiro esquecer minha pretensa superioridade e ressaltar minha necessidade de estar pronta para o que quer que a vida me traga a partir de agora.