terça-feira, 22 de abril de 2008

O veado

Uma espingarda. No quarto onde eu dormi na casa dos meus sogros caçadores há uma espingarda, que por minha causa foi retirada da parede. Esperava por ela o vazio sobre a cômoda. Uma estrutura sem formas assusta-me, tal qual uma arma. Eu, nessa de escrever, quis pintar toda aquela parede com palavras. A sogra riu e disse que não, porque não combinaria com a espingarda.

"mas se quiser desenhar na parede do corredor, da sala aos quartos, eu deixo." Eu lhe propus uma selva. "Ai, adoro! Dá pra fazer em dois dias?" E eu, descarada: ou fico logo mais dois pra acabar, ou volto pra terminar. Meu sogro riu. Rimos todos.

Decorreu-se em dois dias uma enxurrada de acontecimentos, sob nuvens densas, chuva fina e nevoeiro pela manhã. À frente da casa, um descampado, nos fundos o quintal e a estrada, adiante. Meu sogro conhece aquele espaço como poucos e gostava de viajar à caçada. Conheceu "muitas paragens", com essa paixão. É famoso entre os caçadores, "pela sua arte".

"nas selvas onde eu caçava, tigres, leões, leopardos, jaguares mantinham-se do nosso lado, competindo conosco. Caçávamos as mesmas presas que eles, com o tempo devastou-se tudo, muitos bichos se perderam, por esporte dos homens, e esses gatos enormes foram perdendo seu território de caça, extermínio em cadeia. Naquelas tardes de caça, eles pareciam, muitas vezes, espectadores de um teatro e, por outras, tinham sede do nosso sangue. Muitas onças morriam por mãos de caçadores, mas eu nunca cacei por esporte. Matei um jaguar macho que veio me atacar, uma vez, matei-o para não morrer. Tenho por ele muito respeito. O que eu fiz com a carcaça? Vendi-a, é verdade." Meu sogro deixou cair a mão no espaço vazio à sua frente, como se dissesse, "acabou".

"comi tudo que cacei. O objetivo era um caçador abater um animal, o amigo outro e voltarmos pra casa, reunir a família, fazer uma festa, ela bem sabe. Nos conhecemos numa festa dessas, ficamos noivos noutra, nos casamos na seguinte, e nosso filho nasceu na próxima. Mas, o segundo já nasceu no inverno e depois dele começou-se a escacear a mata e a festa. Com os anos, outra selva, empesteada de gente, e suas festas." Ele ri, quase sozinho, não fosse o sopro alegre da sua mulher.

Minha sogra faz crochê e é perspicaz. Adorável mulher simples, com a altivez que me encanta. Ama Verônica, ama-me por que amo a sua filha. Ela me desafia para perceber meu amor, cada vez que falamos sobre ela, no início nunca esotu à vontade ao seu lado. Aos poucos, caem as amarras, ficamos juntos, a passar um bom tempo a conversar.

Na sala, há um troféu: a cabeça de um veado macho, lustroso, com sua galhada, na parede há vinte anos. A espingarda que o matou fica no quarto de héspedes, que tem ares de estúdio e deve ser a sala de estar dos sogros, quando sozinhos. Pedi para ficar nesse quarto, sempre que vou com Verônica ficamos hospedadas ali, sem a espingarda. A casa conserva grandes móveis de madeira, couro nos sofás da sala, nas almofadas. A pele do veado é a peça central da tapeçaria.

Minha sogra é uma mulher interessante, uma mãe avassaladoramente boa. Impossível não a amar. Do tipo de gente que parece plena. Minha sogra é uma mulher dourada, discretamente jovial e suntuosamente rainha. Os netos a adoram. As noras e genros idem. Neste fim de semana não foram lá os netos e ela me disse, assim que cheguei: "vamos estar sós nesse fim de semana, surto de gripe entre os netos, têm que ficar longe do avô.

Meu sogro é um tipo aparentemente ranzinza, mas com uma risada sonora e cheia de prazer. Ele diz coisas muito engraçadas, tem uma visão radical, mas é compassivo, sabe viver. Andou meio mundo, "a passeio ou em caçada", e quando menino embrenhou-se na mata que vai sumindo com a história dos humanos da região. Seu mundo compoe-se naquele espaço e nas memórias das viagens. Nos últimos anos, conforta-se que tem um carro que o leva aos filhos, e que "muito raramente" voa. Ele diz que, aos sessenta, tem visto a "terra nua". Gosto de ouvi-lo falar...

"ando a cavalo tudo isso aqui e não vejo diferença... é só pasto ou plantação. Tenho que ir bem longe pra ver a ponta da mata. Bicho?! Nem raposa... Sumiram todos. Acho que acabou tudo. Não sou responsável por isso sozinho, mas tenho minha parcela de culpa. Ajudei a derrubar muita mata, criei gado, plantei café. Eu ainda me lembro que a meninada ia até ali, na baixa, banhar-se no rio, passear na borda da mata, subir nas árvores, comer as frutas. Paisagem verde, profunda, linda.... A gente foi crescendo, ela foi ficando cada vez mais longe e eu só dei por mim aos sessenta. Os netos mais novos não sabem o que é uma mata e eu senti vergonha ao mostrá-los o que restou, o pouco que ficou."

Sentado, com um dos pés apoiados na poltrona, um homem magro, a lançar o braço no ar, gesto pesadamente vivaz, falava de suas viagens. Os animais são sempre personagens em seu drama. Eu sabia que com eles teria a oportunidade de pensar melhor sobre este emaranhado de palavras em minha mente... Porque o pesadelo de ser bicho tem justificado a minha dor. Vergonha, fixação e indignação sobre o modo como somos arrogantes, todos nós temos sido assim, eu, meus sogros, Veronica, meus pais, quem quer que seja. Vi o quanto eu sou violenta e minha súbita náusea encontrou plano fértil para tornar-se numa sensação acoplada à minha personalidade, a partir de agora, eu acho.

Todos os animais são tristes. E somente se apercebem disso no fim da vida. Semeamos tristeza e pavor e nos tornamos nessas duas coisas. Meus sogros estão também visivelmente tristes, embora estejam bem e se amem como sempre. Comentei com eles sobre minha náusea. Minha sogra pediu apenas para eu não me drogar e meu sogro, "isso me veio há cerca de nove anos. Veio cedo para você." E pipocou: "ainda bem que Verônica gosta de você". Senti-me salva. Minha sogra o abraçou e afagou. Ela, pequena e gorda, fica gloriosa junto do seu homem. Ele, então, contou a história da caçada aos veados.

"foi bonito, porque eu estava muito próximo a ele e via que ele estava há mantendo uma conversa com um outro. É sério, eles não estavam ali para comer, nem lutar. Apenas o via, nos primeiros minutos, movia a boca, parecia falar. Escolhi caçar os veados, porque são rápidos, exsigem muita destreza, mas eu realmente tinha o veado na ponta da lança. Mas não o matei ali, a caçada começou depois, precisei ser ágil e meus amigos comemoraram. Esse trofeu é premiado."

"Eu estava lá, totalmente concentrado nele e ele tão ocupado com sua missão, que não me viu, nem sentiu. Eu estava junto a uma árvore, há menos de vinte metros dele. O tiro certeiro, a grande sorte de um caçador de veados, mas não. Ele havia descido a encosta a correr, o outro depois, mais devagar. Pararam ali e ficaram a olhar-se, este fazia movimentos com a cabeça e soltava pelas ventosas. O outro fazia bem menos barulho, o que me deixou inseguro."

"Eles ficaram bons minutos ali, eu não conseguia atirar. Até que vi o outro corço, quando ele se deitou. Estava mesmo mal, era um ansião à beira da morte, que iria se deixar ficar próximo àquela árvore em que eu estava e simplesmente morrer. Estava claro o que significava aquilo, entende? Eu mataria o veado que acompanhou o ansião ao seu lugar de morrer. "

"Subiu-me uma dormência, escorreguei o pé, o jovem viu-me e saiu a correr. O velho custou a se levantar. Eu não poderia perder aquele belo veado, o belo trofeu, mirei-o, ele corria em linha reta, virou para a esquerda e eu o acertei, no dorso. Morreu quase mesmo ali. O velho berrava, conseguiu forças para me atacar, veio um meu companheiro da caça e o abateu. Busquei o jovem, fiz esse troféu, este tapete e ainda guardo a espingarda com que o matei. Quando meu primeiro neto nasceu, contei-lhe esta história e enxerguei esse lado das coisas... eu matei o indivíduo levou seu ansião ao lugar onde morreria. É um anjo, entende? É um anjo!"

Passamos boas horas olhando a face daquele principe lindo, morto no apogeu, quando descobriu o mistério e o disse ao ansião. Pisávamos na pele de suas costas.

Após jantarmos um peixe assado, comecei a pintar. De manhã, já se podia ver as formas na parede, da sala ao fim do corredor: uma clareira na mata, o caçador vê os veados chegarem para uma derradeira conversa. Voltarei na próxima semana para finalizar este painel.