domingo, 20 de julho de 2008

A vaca e a fila indiana

Este descompromisso em escrever neste blogue agrada-me. Toda a minha vida é cercada por responsabilidades, que é bom saber que tenho um espaço em que eu posso despejar minha náusea, em paz e sozinha, somente quando eu o quiser.

Continuo com sensações intensas e estranhas sobre a vida. Retomei minha rotina anterior e já aparecem mais e mais oportunidades de ganhar dinheiro - parece que minhas férias forçadas despertaram qualquer curiosidade a meu respeito. Sorrateiramente, chegam muito interessados em mim, ao tempo em que todos parecem me esconder alguma coisa.

Verônica diz que estou paranóica, que a causa desta súbita procura foi a publicação da nova edição da revista "Agora", para a qual eu fiz todo o planejamento gráfico. Ficou mesmo linda, vendeu muito e meu nome está novamente sob holofotes. Mas, eu sou paranóica: outra vez, eu, diante de uma situação propícia para a felicidade, sinto-me cabreira. Esta palavra engraçada... é isso mesmo, estou cismada e continuo extremamente sensível.

Mas, tudo se agrava em conjunto com a realidade de um ponto de vista contrário ao meu, de mulher humana. Esta racionalidade sobre a convivência dos animais e nós, humanos, tem-me deixado muito emotiva, tornou-se no canal pelo qual eu verto lágrimas. Minha mente considera os animais como centro da crise, escamoteia alguma informação, que permanece adormecida, mas ronrona e usa suas unhas em minha carne toda, órgãos, tecidos. Sonhei com sangue. Um sangue animal, acho eu.

É um modo de fuga, talvez. à tardinha, começo a relembrar cada cena, cada palavra, cada imagem de bicho que eu tenha visto no dia. São muitas informações, mas diariamente todas estas imagens e textos confirmam a minha suspeita inicial, que me entristece: como raça, somos um fracasso.

Eu me questiono por que fomos tão incapazes e concluo o seguinte: faltou-nos a humildade de considerar cada ser vivo e mineral como parte essencial do nosso projeto de supremacia. A vaidade e a presunção maculam nossa performance, sempre. A competição impossibilita-nos de conviver uns com os outros e a ganância nos isola de tudo e todos. Já abrimos-mão do encontro, da surpresa. A cultura da cera, do artificial, da ficção do amor.

O amor... Clicou-se uma luz, quando viajava do interior para cá, ontem: uma fila de vacas encaminhava-se a uma pequena casa, numa fazenda rente à estrada. O clique:
o que as levava a andar tão organizadamente não era uma ordem emanada de fora, ou uma obrigação gerada por um contrato; elas andavam enfileiradas por amor a si e, por conseguinte, ao grupo e à raça.

Estranho falar em amor, raça e estranho falar em grupo, porém o modo como a minha náusea se faz entender por mim é pela situação dos animais no mundo em que eu vivo. Por que acreditar que somente os humanos sabemos aprender? Nós somos tão perversos...

É estúpido pensar que a possibilidade de culto ao simbólico nos eleva à civilização. Cada conjunto de seres da mesma espécie, em intensidade e influência maior ou menor sobre o ambiente, estabelece igualmente entre si e com o planeta as mesmas interações que a nós são tão caras. Porém, a quem rezariam as vacas, por que rezariam, se o seu mundo não parece lhes oferecer um mistério vital?

Elas andam em fila, porque assim não se perdem umas das outras, defendem-se melhor de ataques e mantêm o fio da comunicação aceso e dinâmico. Porque elas são sábias e esta sabedoria é de todos, vacas e bois. Basta se nascer bovino para saber.

Todavia, a fila pode indicar que é preciso também se querer ser bovino para so saber ser. Assim sendo, aquelas vacas revolucionaram suas ordens individuais e passaram a se conduzir em fila e a seguirem juntas na mesma direção. Tornaram-se una ao longo da evolução. Pastam juntas, comem juntas. Haverá um mundo espiritual da vaca? Será? Acho isso muito intrigante e me pergunto se não é pela vaca que a fila se chamaria indiana.

Nossa, quer dizer, o povo indiano cultua a vaca por sua superioridade, só pode! Assim, em vez de fila indiana, deveríamos dizer fila bovina. Daí se vê o quanto usurpamos dos animais em nosso benefício e eu calculo a nossa dívida para com eles. E se não os tivéssemos que comer, domina-los-íamos? São perguntas sem resposta e nelas reside o grande, o incomensurável mistério da nossa longa história em comum com a vaca e dessa minha angústia permanente e quase indescritível, apesar da felicidade aparente.