terça-feira, 29 de abril de 2008

Porco, hiena e canja de galinha

Finalizei o desenho do corredor. Meu sogro me disse que uma águia o guiou até a clareira natural. Percebeu que ela sequia algo, parava, dava pequenos rodopios no ar, aproximando-se. Como se soubesse que em breve teria comida. Desenhei esta águia, a girar sobre a cena. No canto da imagem, o caçador, com a arma em punho, sob uma árvore para vigiar a clareira onde parou a águia, vê os dois veados descerem a pequena encosta. Um verde escuro predominante, com um cobre nos caules das árvores, feito sombras... Ficou bonito, porque ficou lúgubre. O céu é púrpura, a águia imprime movimento à imagem e reflete a luz branca e quente do sol indefinido daquele fim de tarde.

Os meus sogros adoraram e eu vou ficando na companhia deles. Percebo que somos até parecidos em muitos aspectos, mas as diferenças entre nós é que animam a nossa relação familiar. Prescrustam minha vida com Veronica, com discrição e humor. Gosto muito deles.

A sogra tem pensado muito na sua morte. Aos 64 anos, descobriu que a partir daqui, o que viver agora é lucro. Quer aproveitar enquanto ainda está neste mundo. Meu sogro a olha, como se lhe pedisse que não morra antes dele e eu penso sobre como eles começam a decifrar o mistério da vida.

Para mim, a morte é uma performance do corpo, durante o desencarnar do espírito, e vale dizer que eu admito que os animais tenham alma e espírito e que vivemos para além daqui, em outras formas e sentidos. A perspectiva da experiência única da morte é marcante a todos os animais, contudo, ao fim da vida, a morte não é um desencanto, como diz minha sogra adorável.

As minhas expectativas sobre a morte devem resumir-se na minha crença de que o espírito mantem-se vivo e carrega consigo nossas idéias e emoções e nossas memórias. Meu misticismo começa a se construir e minha sogra é grande responsável por esta transformação.

A morte do corpo só me é tocante porque receio sentir dor. Contudo, não sei o por quê de sacralizarmos o corpo? O porco tem a mesma fisiologia interna que a nossa e matamos cada vez mais porcos. Ao ver assim, ou se esticar mais o pensamento, poderei perceber que este ato de comer um ser vivo anima, matá-lo em série, para alimentar a espécie, é o inferno comum a todos os animais carnívoros. O que eu acredito é que: a humanidade coletora e monogâmica criou a nossa desgraça.

Por que não estamos dominados por uma ideologia agrícola e equilibrada? Porque mesmo a agricultura é danosa, se tivermos que allimentar a tantas bocas. E dentre os primeiros animais que domesticamos estava o porco, anatomicamente tão próximo.


Ao matarmos e comermos um porco, devemos saber que ingerimos orgãos e tecidos muito, mas muito parecidos com os nossos. Vai ver é por isso que comemos tantos porcos. Não quero um coração de porco em mim, mas sei que ele poderia se encaixar entre meus pulmões. E eu como porco, portanto, estou longe da santidade que agora proclamo para mim. Minha vida após a minha morte, se hoje, certamente seria desastrosa.

No entanto, quero em mim coração de ninguém, só o meu. Se ele for bom, vivo mais 90 anos, se for mediano, mais 60, se for fraco, vivo mais 30, e se não prestasse já teria morrido. Mas, esse modo de dizer isso, esse cinismo tosco, esse 'vai-se indo' já indicam que sei nada sobre mim mesma e parece que sigo vivendo por uma sorte imodesta, um norte sempre a construir. Estou neste intenso fluxo de emoções díspares.

Preciso ser por mim responsável e o outro por si mesmo... porém, a vida nasce quando eu proponho estar com o outro e ambos sabemos que, no final, poderemos não morrer juntos. Como uma hiena perdida no deserto, que encontra um grupo matriarcal que passa a integrar, mas sabe que precisa fazer por merecer continuar ali.


Pergunto-me, este laço precisa ser compreendido racionalmete? a hiena pensa? E quando caça, o que ela sente? Por que esse mistério sobre a morte de um corpo? E a morte do porco material e espiritualmente semelhante a mim?

Outra coisa: q
ual o sentido da classificação? No fundo no fundo, toda criatura da terra classifica, aceita, tolera, detesta coisas e coisas ao seu redor. Com seus sentidos incríveis, os animais comunicam-se veementemente e a violência só é mais usada como linguagem nas "relações" entre predadores e presas, como leões e búfalos.

Eu sei que viverei um ápice desta "crise" e que será algo que eu não poderei descrever em palavras... preparo-me para isso. Como a presa está preparada para a morte nas dentadas rasgantes da hiena.

Ando mística, se soubesse de alguém que lesse cartas, pediria para que lesse nelas um destino para mim. E parece-me tão obscuro, meu destino...

Meus dias em casa são sempre muito lentos e rotineiros, sinto-me extremamente desconfortável, como se eu fosse uma estranha em meu próprio lar. Aqui, na casa dos meus sogros, tem sido ótimo. Verônica veio na quinta e ficou até a segunda, sempre trabalhando, mas tudo bem. Temos conversado muito, ela me ajuda pelo simples fato de rir para mim. Lá, não temos tido tanto tempo uma pra outra, ela continua no trabalho, a toda. Os seus pais têm sido amáveis e vivemos um momento de grande harmonia. Meus pais virão amanhã e eu acho que estou realizando um sonho de toda pessoa, mas não me sinto feliz, apenas confortável.

O mundo faz tanto sentido nesta simplicidade interiorana. Rio todo o tempo com eles, transmito amor e recebo amor todo o tempo, de pessoas que se importam comigo. Estou muito sentimental, Veronica tem razão.

Ainda bem que tenho desenhado muito. São as formas vivas que me incitam ao movimento. A minha expressão pessoal tem sido minha terapêutica, neste momento em que o mundo parece querer marcar-me a pele, o espírito, a alma, com estas repentinas angústias pós-almoço e pós-jantar, que me fazem desenhar, dormir, acordar, andar a cavalo, vislumbrar o nada... De repente, um homem passa e, depois de horas, vê-se mulheres e crianças, mas então já se está próximo à vila. Voltar à casa, acarinhar os cães, tomar banho, jantar uma canja de galinha e desenhar, desenhar, desenhar.

será que eu não conseguiria ser vegetaqriana?