sábado, 16 de agosto de 2008

Sábia Mamba

No próximo sábado, será o aniversário do meu melhor amigo, Lúcio. Faremos um almoço, na casa de Beth, sua irmã. A casa ampla, mais parece um clube, serve bem à nossa fome de diversão. Há um cinema na casa, uma piscina e os filhos dela, sempre fofos. Lúcio convidou os primos e priminhos e a festa vai ser mesmo animada. Para mim, será ótimo, sinto como se fosse sentir um pouco mas de paz nesse dia.
Não me lembro da primeira vez que nos vimos, porque sentimos um pelo outro aquele tipo de amizade em que não se olha para trás e, quando se resolve ver o que passou, surgem já os anos com ecos de sorrisos, choros, conselhos e confidências. COnheço cada detalhe dasua vida e vinha triste com ela, por conta do seu casamento com S. Esta festa de aniversário de Lúcio será a primeira, desde 2004, em que ela não comparecerá.

S. é uma mulher que consegue desestabilizar as relações mais antigas e sólidas. Ao menos o nosso círculo de amigos ela conseguiu dissolver por algum tempo. Passamos a nos ver apenas em eventos e festas de aniversários.
Nesse período, Lúcio mudou muito, tornou-se num workaholic que frequentava pizzarias às quintas para estar com os colegas de S. e suas famílias, e que viajava aos fins de semana com ela, para conhecer um lugar novo, fotografar (o que era bom!) e também produzir fotos dos dois posando, enfadonhos, em fotografias que só interessavam a esses amigos da pizzaria. Isso, quando não viajavam juntos, num fim de semana. Uma coisa que não entendo: como um fotógrafo da qualidade de Lúcio posava para aquelas fotos?

A sorte é que eu e ele nos vemos com frequência, porque ele é fotógrafo. Encontramo-nos sempre em reuniões de trabalho. A nossa amizade superaria a blindagem de S., até porque foi ela quem me apresentou Veronika, quer dizer, apesar de a detestar, eu sempre mantive com ela uma relação de cordialidade.

É que ela não deixava ninguém à vontade no apartamento deles e isso enclausurou um pouco Lúcio. Por outro lado, ele ficou mais concentrado, trabalhou mais e fez uma pequena fortuna, ao lado de S.. Ou seja, o que quer que ele tenha encontrado nela, fazia-lhe bem e por isso eu a respeitava. Mas, vamos combinar, ela era uma cobra entre a gente.
Uma cobra... resolvi vir aqui escrever depois de meu encontro com Lúci hoje, entre a tarde e a noite. Comentamos sobre o seu aniversário de 29 anos, sobre as nossas antigas namoradas, sobre o colégio e sobre sua "Fase S".

Hoje, quatro meses após se separarem, ele me disse: "três anos com uma cobra". Inadmissível isso! Eu lhe perguntei se ele estava vedado, amarrado ou amordaçado, quer dizer, ele que viveu esse tempo com ela...
"Ela é uma pessoa incrível, ela consegue fazer todos os momentos prazerosos ou dramáticos e, por isso, muito bonitos e tocantes. Não pense que eu sofri ao lado dela, pelo contrário, fui feliz, mas deixava passar muita coisa. Até que me acendeu uma luz... Mas, que saber, agora sim me sinto pronto para a mulher-mãe dos meus filhos.".
Eu ri do jeito como ele falou essa barbaridade, "mulher-mãe-dos-meus-filhos", mas era convincente. Ele é, na verdade, um romântico.

Viemos para minha casa juntos, Veronika nos preparou um cozido de carne de porco com legumes e depois, empanzinados, nos sentamos diante da televisão. Fiz o meu teste de tolerância, meu procedimento básico com as visitas, nessa minha crise, digamos assim: passei para o canal mais leve de documentários sobre "vida animal" e esperei as reações.

Lúcio e eu não acreditamos quando vimos o tema do filme: a Mamba Negra Africana. Veronika, ao notar nossa concentração, disse, a seu jeito engraçado, "eu não acredito que vou ter que aturar isso!", porque ela já conhecia meu ritual de 3 horas vendo aqueles "filmes sobre bichos".
E ela fica ainda mais brava quando eu paro no canal pessimista, que associa os bichos aos guerreiros, ou aos assassinos frios, tornando sua refeição num "festim". Esse canal que víamos, não, era mais holístico, as abordagens eram até mais científicas. Eu o chamava de canal leve, porque otimismo é ingenuidade e nossa geração já não pode mais reclamar que não sabe das coisas.

A Mamba Negra é a segunda maior serpente e tem o veneno mais letal dentre elas. É ainda a mais rápida, tem esperança de vida de mais de dez anos e não está ameaçada de extinção. Alimenta-se de roedores e aves. A Mamba Negra Africana...
O documentário consitia, basicamente, no exibicionismo de um biólogo de meia-idade, que capturou uma Mamba e mostrou à câmera sua língua rocha. A fina e enorme cobra enrolava-se nos braços do patético apresentador. No momento que ele deve ter considerado o clímax narrativo, ele perguntou, infame: "por que um veneno tão forte para se alimentar de animais tão pequenos?"

A verdade é que a Mamba Negra desenvolveu a melhor defesa num mundo cruel. Sim, tanto veneno para se proteger de quem vier comê-la, ou roubá-la. Sempre soube que não estava sozinha e que não deveria facilmente confiar nos que tinha em volta, inclusive podia esperar quase tudo de sua própria espécie, acostumada ao canibalismo. Aprendi esses detalhes num outro documentário sobre serpentes. Ou seja, eu tinha o arsenal para manter a conversa, especialmente a partir do ponto em que S. rodou em nossas bocas. Um tribunal se instalou.

Para variar, Veronika trouxe a sentença: "nem do ponto de vista prático, nem teórico, consigo ver apenas a maldade na Mamba Negra, assim como acho que S. é uma pessoa extraordinária, apesar de muito insegura e vingativa. O que temos que aprender é a fazer como a Mamba e expressar a raiva antes de atirar-se ao bote, para dar chance ao outro de tomar seu caminho. A Mamba Negra é, na verdade, a mestre com quem S. e todos nós temos muito a aprender."

Concordamos, eu e Lúcio. Tomamos sorvete na noite quente, combinamos a festa da semana que vem e ele foi pra casa, meu amigo querido, mais em paz com S.. Eu fiquei, e procurei por esta paz. Perdoei S. e perdoei a mim mesma, porque eu posso ter sido a outra criatura, de quem a mamba negra aprendeu a sentir receio e a fez, geração a geração, desenvolver o tal veneno terrível.

A mensagem da Mamba no entanto é clara, como foi a de S., tempos atrás, ao comentar: "Lúcio, esses seus amigos não sabem onde fica a esquina mais próxima." É péssimo isso, aquilo nos atingiu, ofendeu, afastou nosso amnigo de nós, mas vamos lá, cada qual somos cá umas cobras. S. me suportava, claro, pela presença de Veronika, avalizando para ela a minha existência em seu "meio", mas a atenção era regrada e cheia de incovenientes formalidades.

Eu a detestava e agora vejo que ela, no tempero desse veneno maldito por mim e por todos, nos mostrava uma verdade áspera sobre nós mesmos e que nos fez, sem que soubéssemos, mudar em direção a uma vida mais produtiva, o que envolve os lados bons e maus deste estado de coisas.
Neste momento, sinto que passo por uma crise de pessas "produtiva", à moda S., mas esta crise tem a ver ainda mais com minha habilidade em lidar com o que me envolve e me obriga. Só me dou bem com Veronika prque ela tem a mesma limitação e procuramos nos superar, uma apoiando a outra.
Ainda não compreendo bem as razões e os conceitos de S., mas acho que não lhe tenho mais nenhum ressentimento. Liguei a Lúcio e lhe pedi para que a convidasse. Senti-me mais leve e vim escrever. É engraçado como estamos tão intimamente ligados aos animais, seja um passarinho ou uma cobra. Presa e predador, ambos conhecem a terra tão bem como o mais sábios entre nós, humanos. Ambos nos são tão... úteis?!

Pela primeira vez desde que comecei este blogue em que pouco escrevo, senti algum alívio. Contudo, esta sensação maravilhosa e fresca aumentou o medo esquisito que tem me apertado o coração. Novamente, as contradições de minha náusea. Tudo para ser feliz e nada me alegra.