sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Peixe

Eu tenho explodido frases feitas, filosofia purista. E tenho tido esses sonhos terríveis. Resolvi escrever sobre este sofrimento, porque eu nunca fui muito de sentir. Eu vivia as sensações como se elas não se passassem comigo. Poucos acontecimentos viravam história para mim.

Eu, na verdade, me apercebi disso quando trabalhei para a publicidade dos bichinhos. Era uma marca de sabão em pó, com uns mascotes. Entrava um homem atrapalhado em cena, com as crianças fantasiadas de porquinhos, ovelhinhas, macaquinhos e, claro, vaquinhas, sobre o texto do locutor: "sem aprender (sujeira colorida enquanto os bichinhos desenham, conversam, brincam e praticam esportes), seu filho não conseguirá viver nesse mundo".

Ao final, o homem, já todo feliz brincava com as crianças. A mulher chega e se junta a eles na bagunça. Televídeo premiado, um sucesso. Hoje, acho esta mensagem um ato de extrema violência. Somente agora isso me fez sentir remorços. O fato é que depois das campanhas de dois anos atrás, estive sempre cheia de trabalho e ganhei burros de dinheiro.

Eu tenho apenas cumprido prazos, quase não desenho para além do que me pedem. E assim eu vejo como estou escrava do meu ofício. Como se ele se personificasse e eu passasse a trata-lo por Senhor e me esquecesse de todo o resto... Eu estou assim, sem vontades. Na verdade, eu e Verónica, ela também sempre cheia de matemáticas complicadas, finanças, dinheiro... Estamos mesmo um tanto vazias ultimamente, mas não chega a ser uma crise grave. Eu a amo inteiramente, seguramo-nos no quanto nos sentimos bem uma com a outra, e é exatamente isso que nos tem ligado: a nossa cumplicidade na solidão massiva do trabalho.

De uns dias para cá, eu verifico que nasceu uma bolha em mim, mas eu sonhei esta noite que estava atada a uma corrente presa a uma bola de ferro, mergulhada no fundo de um aquário globular. A corrente ao calcanhar esquerdo era suficiente para me fazer quase passar pelo fio d'água, sem o conseguir. Acordei!

Eu vi uma sala de estar, verde e marrom, alta. Eu estava na sala, no lado contrário ao da tv. As pessoas de costas para mim assistiam ao tele jornal! Foi súbito e muito real, desesperei-me. Acordei, respirei fundo, não me lembro de quando voltei a dormir. Isso ficou aqui, ruminante o dia inteiro, rabisquei, rabisquei e nem trabalhar consegui. Daí se vê que eu estou bastante descontrolada.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Numa pele de cobra

Às vezes, a gente faz mal sem saber porquê. Dizem ser preciso vigiar e é verdade: é preciso constantemente a vigilância de si mesmo. Rezar são os minutos de folga, para quem reza. Quem fuma respira o vício, quem acredita depender de algo ou alguém vive a demência das horas sombrias de ressentimento.

Às vezes, a gente faz mal porque é preciso.
Faz mal e vigia, convence-se. Trilhar o caminho da dor para aprender que a dor é clara professora. A culpa é um delírio na voz alheia que grita em nós. Errado é impor a vontade sobre o mal ou dar razão a esta musa idílica e parva. Porque a precisão é de um Deus enorme, um negro resplandecente segredo no espaço, na vida: o Tempo, diria meu pai.

O pior é que crer nesse
fenômeno da natureza como Deus é um passo para justificar o passado, o que pode ensejar celebrações de atrocidades. Há quantos séculos estamos em guerra? Como num baile, em que ninguém vigia, como num festim, entre uma mordida e outra da hiena no bucho da zebra putrefacta.

O animal gosta do ócio.
Tornamo-nos escravos de uma de nossas mais cruéis invenções: o trabalho obrigatório. Fazer isso e aquilo, tantas horas por dia, em troca de água, comida e os confortos da vida tecnológica. Sem prazer, a vida é vã. A morte parece mesmo o portão do inferno para quem não conhece o gozo. Para os animais, tudo valeria a pena e seria pleno de sentido, se não fôssemos nós. Incluímos o medo no rol dos prazeres e isto jamais fará bem a nós ou aos animais, e eles também o sabem.

Prazer, dor, morte, submissão, liberdade, ilusão. Eu, que nunca fui de perder grande tempo com
firulas, tomei aversão ao silêncio, de uns dias pra cá. Eu tenho tido dias desesperados.

Em princípio, tudo está bem comigo mas, de repente, toma-me uma angústia seca, pesada e amarga. Canso-me toda. Tenho tido sonhos esquisitos. Esta noite, sonhei que tinha na pele de uma cobra e que as escamas me arranhavam por dentro. Não podia me mover, sem sentir o toque áspero no pulmão, no rim, no coração e na cabeça. a pele sobre a cabeça criava um som arranhado, como unha em parede lisa. Pessoas me tiravam fotografias, estávamos num estúdio de filmagem. Pediam para que eu pousasse, achavam magnífico! Eu chorava e estava nua, a me rasgar com as escamas.

Às vezes, a gente faz mal que nem sente. E leva a tarde a pensar no mal que fez. Fumaça azulada, azedume gentil, língua m
aior que a boca.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

O cão do rei

Um animal domesticado não sabe o que faz.
Ele vive em constante negociação com quem o oprime, a qual perde sempre, pela dependência do opositor. Nunca está suficientemente seguro para procurar seu lugar lá fora. Ou simplesmente não o pode fazer, uma vez amarrado a um pedaço de ferro, ou entre grades, ou em aquários ou mesas de ciência alumínica, com químicos a lhes rasgarem tecisos e orgãos e a manchar seus sangues. Desta ciência nasce apenas desesperança. Subjugamos todos os animais. E o que fizemos com seus medos? Usamo-los como escudo para nós mesmos.

Acabo de ler um e-mail que recebi da autora do livro em que estou envolvida. Ela enviou-me um texto e uma imagem, com a cena do rapto do menino Rei da Inglaterra, Eduardo V, em 1843. Coroado aos 12 anos após repentina morte do seu vitorioso pai, foi preso na Torre de Londres com o irmão, por um inimigo de seu tutor e posteiormente morto. Sobre que pedras alicerça-se o ocidente moderno...



A autora compôs uma personagem baseada no irmão do rei, o pequeno Duque de Gloucester, e me pediu para estudar o quadro de Paul Delaroche de 1830, "Os Príncipes da Torre". A certeza do fim na expressão de medo do pequeno duque e a indignação heroificada no olhar do rei, neste quadro, mostraram-me a inusitada agonia de dois jovens homens marcados para morrer. Rei morto pelos servos do pai.

A pesar disso, pode ser que o rei sentisse mais medo que o seu irmão, mas deixe que a imagem mostre seu outro drama: há lá um cão. Esse cão do rei também morreu? Será que ele foi posto à rua, testemunha inválida? Qual terá sido a melhor das suas sortes? Manteve-se um cão a vigiar menino, ou foi visto um vaguear por Londres, em volta da torre, após aqueles dias?

Há algo que não me sai: de que tem medo este cachorro na imagem? Ele vigia, espera... como ele contaria esta história? A quem ele protege? Fosse um cavalo numa guerra, seguiria impávido até a ponta da lança adversária. Na torre do rei menino, ele verá primeiro a cara do carrasco, todavia mal entenderá a voz do mandante.

Lua pedra brilhante

Já era noite, eu estava no ônibus com a janela infinita. A lua cheia, castanha como uma pedra aureada, resplandescente até o chão entre os prédios, sumiu numa praça quando descíamos até a vizinhança do bairro. Farmácias, cafés, açougues e padarias.

A meio do caminho, num canteiro mais alto que a estrada, destacou-se um cachorro esguio, com uma coleira preta com uma corda fina a mantê-lo próximo a um menino que segurava esta corda e mais outra, vermelha, de um segundo cachorro também branco, malhado com um castanho mais claro que o do outro, que era igual ao da lua, ainda escondida atrás dos edifícios num dos quais, provavelmente, aquele menino e seus cães viviam. Ele sentado a olhar a estrada, os cães alerta.

Animais domesticados são escravos numa condição surda, verdadeira esfinge, constante e impossível, pela qual aprendem a se tornar uma extensão física de corpos humanos, sendo-lhes esta a garantia de sobrevivência. A vida de um cão só lhe é favorável enquanto ele for útil a uma pessoa. Enquanto for um brinquedo, um guarda, um utencílio, ornamento ou ferramenta de alguém. Cavalo que preserva sua altivez é chicoteado mais vezes. A domesticação de um animal é um ato de horror.

É possível que um animal seja sábio? Estou certa de que os cães do menino sabem algo sobre suas vidas, que pode ser dividido em três informações-chave: há os cachorros atados, fortes e cuidados; os mal-tratados, os confinados, os adoecidos; ou há os abatidos em série, os esquecidos, jogados à rua turbulenta como um rio de onde não se tira nada, além do perigo imintente.

Estes cães sentinela do menino da praça alta não sabiam porém que eram seus únicos amigos naquele momento. Vigiavam-no para se vigiarem a si próprios. Os cães são leais porque têm medo. Será que eles imaginam fulgazmente uma vida ao natural? Por que não submeteram o menino e fugiram? Ainda tentam retirar suas coleiras? Eles não reconhecem a coleira de um no pescoço do outro.

Eu ando mesmo obcecada por animais... Quanto mistério! Ontem, tive duas visões. Mais cedo, já havia reparado num outro cachorro, na estação. Ele também trazia uma coleira, porém com uma corda partida. Deve ter uma história ligada às chuvas dos últimos dias. Se o for, pareceu-me ter fugido por medo da tempestade. Talvez estivesse sozinho durante a noite e escapou obstinado pela área alagada da cidade.

Era alto, preto e castanho. Parecia calmo. Estava molhado e sua cor marrom era muito diferente do castanho lunar, mais intensa e terrena, quase sem brilho. Havia neste cão uma esperança latente, que se despertava em sua cara, depois de alguns olhares longos, fixos, à procura de um rumo... aonde? Quem sabe já reconheceu que o seu dono tinha razão: melhor daquele jeito.

Estava muito confuso e nitidamente triste. Correu para a direita, parou, depois para a esquerda e parou novamente. Olhava em volta, buscava. Observei-o por instantes, desci pelas escadas e não sei o que ele fez da sua vida. Vi-o dar dois passos, parar, abaixar a cabeça e a cauda, olhar pra trás, para os lados. Deixei-o assim. Pensava ele em voltar para um cativeiro? Seu pelo molhado espesso e grosso parecia cuidado. Não havia marcas. Era um cão perdido. Lembrou-me Timbuktu.

E se eu tentasse ajudá-lo? No trem, consolei-me ao pensar que o que eu poderia fazer por ele em nada melhoraria sua sitiação. Ele seria entregue a outras pessoas, que o matariam depois de alguns dias, ou que o manteriam vivo, em meio a outros vários cães, formando um conjunto de provas vivas do quanto faz mal ao bicho a dependência do humano. Eu sinto estar realmente tocada por estas duas cenas. Os cães do menino não fazem mais que a sua obrigação?

Sou solidária aos medos. Tanto com um como com outros, pelo medo do medo, no planeta humano. Eu, por uma janela ou na estação, a panorâmica ou um contorno de rua.