segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Jackson

Acabo de acordar. Agora, são duas da manhã, Veronika dorme tranquila no reservado instalado no quarto, com uma cama, para ela estar comigo nestas noites tranquilas de hospital. Veronika é a pessoa no mundo que mais me compreende e ontem ela me deu mais uma prova disso.

Quando veio me ver, no fim da tarde, Veronika encontrou um carro velho cheio de cachorros e logo se interessou pelo que via, uma vez que sabe de minha fixação por bichos. Ela, então, aproximou-se do carro e lá estava um rapaz, sozinho, guardando os cães e demais pertences. Ao saber pelo rapaz que se tratava de apetrechos de um grupo mambembe e que no hospital estava o seu irmão, que sofre de uma doença congênita no coração e que trabalha na rua, acompanhao de seu cão, Jackson, ela logo pediu para que este rapaz no carro lhe apresentasse à sua família, já pensando no quanto me faria bem conhecer esta criança e sua arte.

Foi então que me surgiu no quarto um menino adorável, Jonas. Aos 13 anos, Jonas é arrimo de família. Seu número consiste em tocar um acordeão e, ao cantar, ser acompanhado pelo seu velho pequenez a uivar. Jonas fala sobre sua arte com grande emoção e pureza, contudo seu olhar é triste, por conta de sua limitação de saúde.

A cada quinze dias, Jonas vem ao hospital, para exames cardíacos de controle. Seu coração bate fracamente e ele espera sua vez de realizar a cirurgia que poderá salvá-lo deste sofrimento. A despeito desta sua doença, ele é um menino esperto, inteligente e muito, muito talentoso. Adorou saber que eu sou ilustradora, quis ver meus desenhos, interessou-se por tudo. Ele me disse que gosta de desenhar e que pretende estudar arquitetura.

Entretanto, sua vida não lhe garante esta oportunidade. A escola não é um espaço frequente em sua educação, tanto por conta de sua doença, como pelas suas responsabilidades em relação à sua família, que viaja constantemente e vive em grande penúria a maior parte do tempo.

O número de Jonas e Jackson é o mais lucrativo, mais até que os malabarismos com poodles que seu irmão, o rapaz do carro, executa. Em relação ao teatro de bonecos que seus pais encenam, então, é que a arte de Jonas se mostra absolutamente indispensável ao sustento desta família.

Eu quis saber de tudo sobre sua vida e sobre sua relação com Jackson. Do alto de sua inocência, ele me disse que Jackson é o cão mais artista que ele e sua família já conhecera e que ambos aprenderam juntos este ofício. Perguntei-lhe como os cães eram treinados e ele respondeu, simplesmente, "eles é que querem aprender. Jackson mesmo, diz meu pai, não saia de perto do acordeão, quando era filhote. Eles nascem pra isso".

Foi como se eu despencasse de um abismo. Como assim, "eles nascem pra isso"?! Eles não são forçados a aprender?, perguntei-lhe. Ele responde que, de jeito nenhum, os cachorros apanham. "Só aprende a cantar aquele que leva jeito e que se aproxima de nós pela própria vontade. Tem que estar no sangue o talento, senão, não tem surra que dê jeito. É como nós, em nossa família todo mundo é artista, vem no sangue."

Jackson então tem talento e vontade. Ele parece ter assumido seu lugar nesta família e suas razões podem parecer estranhas para todos nós, mas não para Jonas. Ele acredita que os cães são os melhores e mais inteligentes amigos do ser humano e que eles, os cães, podem aprender quase tudo porque, embora não falem, conseguem pensar quase como os humanos. Para Jonas, seu cão é parte de sua família e seu carinho ao falar dele sugerem que o respeito é elemento essencial desta relação.

De repente, tudo se reacendeu em mim, apesar das questões veementes e claras que simultaneamente se me revelaram: o comportamento de Jackson seria mais uma faceta da evolução natural? Haveria uma trégua na nossa relação dominador-dominado com os animais? Não seríamos assim tão maus ao implantarmos este sistema hierárquico na natureza, submetendo os animais à nossa vontade?

A inocência e a força de Jonas me abriram uma porta. Acordei tranquila, como se ele pudesse me guiar por esse momento obscuro. Este menino gracioso conhece a dor, a pobreza e o amor de um modo como pessoas como eu jamais poderão conhecer. Marcamos de nos reencontrar amanhã, Veronika pediu à mãe que o deixasse visitar-me diariamente, como um meio de ajudar em minha recuperação. Ela aceitou, sem pedir nada em troca.

Estou completa e felizmente fascinada por Jonas, sua família e sua história. A grande pena é que não verei Jackson tão cedo. Animais não podem entrar em hospitais de humanos.