sábado, 22 de novembro de 2008

Mãe-ave-marinha

Meus períodos de sono têm durado mais de doze horas. Acordo a qualquer tempo e acabo por enontrar os mesmos poucos companheiros, por vezes dormindo, do meu lado: ou minha mãe, meu pai, ou Veronika ou os amigos mais íntimos, aos quais eu pedi que esperassem minha chegada em casa, para voltarem a me ver. Meus irmãos falam comigo online, ainda bem que o fuso deles encaixa em minha agnda irregular.

Lúcio não apareceu por aqui e eu fiquei um pouco magoada com ele. As desculpas pelo sumiço variam: minha mãe disse-me que ele viajou a trabalho, Veronika refere-se apenas a uma viagem, Beth já mencionou uma catapora persistente... Algo de misterioso há nesse desencontro. O que terá acontecido ao meu melhor amigo, para ele não vir me visitar no hospital? Não esperava por isso, ser abandonda por Lúcio. Sem falar na insistência de todos para que eu me lembre de algo que eu não sei minimamente o que seja.


Parti, então, em busca de pistas.
Passei a reler os textos que eu havia publicado aqui, anteriormente. E o que eu vejo: um pessoa a beira de uma revelação, confusa pelas mensagens que o tempo lhe plantava nas sensações; a minha náusea era uma premonição?

O que parece-me claro é que eu estava obcecada pela fatalidade. E os animais me servem muito bem a isso. Porque eles agem e reagem somente diante da necessidade, eles se mantêm obedientes aos ditames da natureza.

Quando se sentem ameaçados, fogem, por medo de não cumprirem sua função maior no mundo, a reprodução. O que muito me impressiona neles é o fato de cada um, assustador ou assustado, ocuparem um lugar e cumprirem uma função na chamada seleção natural.
Não consigo sentir pena dos que são caçados, mesmo das crias, porque eles têm nesta caça uma oportunidade de redenção da espécie.

Por exemplo, os Gnus. Em sua longa jornada fugindo do frio e da seca, atravessam rios, onde são atacados por crocodilos; em terra firme, há os lobos, os leopardos, os leões, as chitas e as hienas. Muitos morrem na boca de uns e de outros bichos, mas estas mortes são sacrificiais, no sentido de que a morte de uns permite a sequência da jornada da grande manada.

Somente é triste o fato de os mais fracos e jovens serem as presas prediletas, por serem mais vulneráveis. E isso nos mostra a dor dos que ficam, sem suas crias, ou sem seus pais.

Vi uma cena num dos filmes documentários que me tocou profundamente. Uma mãe-gnu é atacada por leões, que a comem e deixam somente a carcaça, que depois será aproveitada por abutres. Ali, ao seu lado, diante do cheiro da mãe dilapidada, uma cria berra agora insistente e esperançosamente.
Impressionante ainda estar viva, mais cedo ou mais tarde, seria comida por hienas ou lobos, já que os leões da área saciaram sua sede com a mãe corpulenta.

Cortou-me o coração aquele berro de filhote a chamar por uma mãe morta.
Vi muitas cenas como estas e o contrário também ocorreu: mães e chorar pelas crias mortas e mães a lutar inutilmente contra leões para salvar suas crias. Na verdade, presumo que haja um código secreto entre os animais, que tornam esses acontecimentos compreensíveis por eles, como se uma mãe soubesse que, dentre seus filhotes, boa parte deles cairá sob patas ou dentes maiores e mais fortes.

A manada segue em frente e aquela mãe entrará novamente no cio e dará a luz outro filhote, que poderá também morrer numa caçada e assim é a sua vida.

De repente, ao reler os textos e ao sentir a falta do meu amigo, percebi que agora minha náusea premonitória tornou-se num caminho reto e seguro, de modo a eu me identificar sobremaneira com os dramas dos animais. Contudo, quando ultrapasso o cenário da floresta e visualizo os abatedouros, os maus-tratos a que submetemos aqueles animais que conseguimos domesticar, vejo o quanto fomos vis em relação às ordens naturais, o quanto, por meio dos animais, aprimoramos nosso sadismo e nossa presunção doentia de superioridade.

Isso me entristce, como humana que sou. Não sei exatamente meu lugar nessa lógica que persigo há quase um ano. Agora, presa aqui, a olhar, ora para um remanescente de floresta, ora para a cidade e seus sinais de miséria e opulência, pergunto-me:

onde eu me encaixo, na cidade?
O que eu perdi é o que agora me projeta tão proximamente aos bichos e suas dores ou fui trazida por estes?
Quem sou eu nesta trama?

Onde está Lúcio para me apontar uma suposta verdade e me fazer enxergar, com suas próprias atitudes, que nesta vida tudo é passível de justificativa, que o importate é se deixar ir com a vida?

Eu, que sempre fui uma mulher contente, que sempre fiz o que quis e que sempre fui amada, nunca senti a amargura do abandono, ou da perda. Contudo, vejo agora que eu, ainda que não o soubesse, preparava-me para adentrar por esta porta, para contemplar o mundo por enormes paredes de vidro, com cortinas. Eu me preparava para me comunicar com os animais e descobrir... o quê?

Ainda bem que o meu caminho até aquela mãe morta e sua cria perdida está facilitado pela minha própria morte. Não sei o que restará do mundo a esta nova Guta. Novamente, sou uma menina a descobrir as possibilidades, desta vez limitada pela dor e pela incerteza.

Sim, sou uma mãe-ave-marinha, de um outro filme, que vê seu valioso ovo ser levado pelo abutre, a despeito de seu esforço para detê-lo. Sim, sou esta mãe, que chorou longamente e me mostrou, pela televisão, seu olhar lacrimoso e mais triste, muito triste.