domingo, 21 de dezembro de 2008

Humana

Há os olhos de quem morre. De certo, poucos sãos os que viram os olhos de um igual a morrer. A iminência do fim... Será que a morte é um mistério também para os outros animais?

Faz todo o sentido para o búfalo, herbívoro, servir de alimento ao leão? É provável que sim. Talvez, ele apenas se pergunte, "por que dói tanto"? Talvez a sua manada sinta a sua falta, ou talvez os demais nem notem a sua ausência, em meio aos outros.

O mistério, para mim, é a dor de quem morre, a asfixia do último suspiro, aquele ir sem volta. É uma solidão tão intensamente vivida... engraçado eu me lembrar de uma emoção vivida na morte. Agora, eu sei que comigo estava também a morte naquela tarde.

Minha emoção transborda em lágrimas, mal consigo escrever. Sou agora como um chimpanzé que entra na jaula pela primeira vez. Sou a baleia capturada por um arpão em pleno mar. A minha dor é uma dor da raça. Eu... fiz. A cada segundo a sensação do meu amigo a me apertar o abdome, antes da batida...

Não o quis fazer, não sei. Revi a história toda, Felício morreu. Há em mim um inacabável buraco.

A morte a espreita. Jackson... Jonas piorou seu estado de saúde. Ninguém consegue encontrar o cão, estamos todos como que atados. Preocupo-me mais com Jonas do que comigo. e eu parar para pensar em meu drama e meu futuro e minhas mortes, terei que atravessar uma enorme correnteza, a arranhar minhas pernas e a esmorecer um pouco mais a cada passo. A querer voltar ao ponto de partida. A querer curar Jonas, a querer encontrar Jackson.

Sei que ele morreu e estou atada. Sou a ovelha ao se confrontar com a lâmina que porá fim à sua vida. Sou a morte. Se ao menos encontrasse Jackson e conseguisse salvar Jonas...

A minha raça é miserável. Sua estrada levou-me a querer experimentar o perigo, porque creio ser maior, inatingível; creio ser eterna e creio ser única. Ser humana parece-me o pior dos privilégios.

Sou o cocô do cavalo do bandido. Sou o cavalo e o bandido. E sou a dor tremenda e aguda. Estou morta também.

Há os olhos de quem morre e o coração de quem mata. Porém, há uma razão para isso e a presa a conhece tanto quanto o predador. Por que dói tanto? Por que me sinto presa ou predador, quando sei que eu não tinha fome, quando eu não sou uma leoa à caça? O que me fez chegar até aquele cruzamento?

Eu sou humana e preciso de amor... Há alguém que pode me devolver esta luz. Jonas não pode morrer também. Estou cansada.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

SMS

GUTA
ESTOU MELHOR, OBRIGADO POR TUDO.
ME IRMÃO VIU O RAPAZ QUE ROUBOU MEU CACHORRO.
PEDI A ELE PARA IR AO SEU QUARTO LHE DIZER COMO ELE ERA.
AJUDE-ME, GUTA.
EU ESTOU MUITO TRISTE.
PENA EU NÃO PODER IR AO SEU QUARTO.
ESTOU SEM FORÇAS. MEU CORAÇÃO ESTÁ PARTIDO.
JONAS.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

A armadilha

Jonas sentiu-se mal, está internado aqui, no terceiro andar.
Eu, inválida isolada numa torre transparente, sequer posso descer, para vê-lo e tentar acalmá-lo.

Acho que somente Jonas reconheceria minha dor, assim como eu reconheço a dele tão bem. Sei o que é sentir haver perdido uma parte fundamental de minha vida. Sinto-me como um salmão preso a uma rede, que vê a sua família ficar para traz de si - eu sou este peixe e sou também o que escapou da rede. Sou o que sente perder o ente querido, estando ele próprio absolutamente perdido e o que perde o ente querido e se alivia por ainda estar vivo.

Não consigo pensar em outra coisa. Sou culpada por Jackson também? O que eu poderia fazer por Jonas que não fiz?

As perguntas têm resposta, e eu estou envolvida demais com este sequestro do Jackson que peço licença para sentir mais nada.

Estou vazia, estou morta. Felício... Jackson levou consigo a luz no fim do meu túnel, ou eu serei a luz no fim do túnel dele? Onde está meu amigo, onde está Jackson? A mão em meu abdome, o instante final e a triste história do menino cantor, de coração doente, sem seu grande compenheiro, evado infamemente por alguém que se julga apto a alterar a vida de um ser vivo, de quebrar um laço tão intenso e belo de interdependência.
Estou certa de que este rapaz irresponsável não enxerga para além do seu próprio umbigo. Não consigo ver um modo pior de se ser perverso. O que quer que eu tenha feito, o que quer que estas pessoas todas querem tanto saber de mim não é tão grave quanto isso, que este menino fez ao Jonas e ao Jackson.

Em respeito a isto e por reconhecer este como ponto máximo de deturpação das nossas relações conosco mesmos e com os demais outros animais, fico calada. Sinto todas as dores que me cabem, entrego-me a elas, deixo-me dilascerar por dentro, trancada com um segredo monstruoso, prestes a se revelar.

Num desses documentários que vi, havia uma chipanzé machucada: ela havia sido pega por uma armadilha que quase lhe arrancou uma pata. Ela continuava, perseverante e dolorida, o seu destino de ser elefante. Perdeu algo naquela armadilha, não sabe se continuará a sentir, pela pata machucada, as vibrações distantes que seus irmãos elefantes emanam pela terra; ainda assim, ela segue, ignorante de sua sorte, perdida e impelida pela única alternativa que lhe resta: continuar a ser, apesar das perdas.

Sou eu a elefante e sou eu a armadilha. Sou eu a pata machucada e sou eu a vibração que esta pata, provavalmente, não voltará a sentir.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Lontra

Desgraça pouca é bobagem.
Como assim, roubaram Jackson?!


Eu estive ontem atropelada novamente, meu corpo mal se movia porque eu estava catatônica. Veronika está comigo a todo o tempo, eu estou como que engessada, muito paralisada.
Entretanto, encontro nova energia para me segurar diante de mais uma situação de trauma. Sobrepôs-se a qualquer dor o sumiço de Jackson.

Os psicólogos queixaram-se a Veronika sobre minha fixação neste menino e seu cão. Eu fui repreendida veementemente por ela, quanto a me afastar deste "problema" do cão, o qual eu não estou em qualquer condição de resolver. Verdade, e justamente esta é minha aflição: não o poder encontrar e salvar.

Por que teríamos que perdê-lo? Quem, em sã consciência, pensaria ser melhor para este cão viver com quem quer seja, afora Jonas? Não poder conforontar esta prepotência é o que me atordoa.
Uma coisa é perder algo por um golpe do destino, outra bem diferente é perder algo importante por conta da atitude presunçosa de um adolescente humano sem qualquer responsabilidade para o ocupar, e sem pais suficientemente seguros para o impedir de fazer tal coisa.


Portanto, deixei que Veronika, os médicos, meus pais e todos os que se ocupam de me "recuperar" contivessem todas as preocupações cabíveis ao meu caso e vim aqui revelar que mechi meus pauzinhos para ajudar Jonas a encontrar seu companheiro: liguei para um segurança de meu pai e o fiz entrar em contato com Jonas e sua família, a fim de encontrarem Jackson.

Foi o que eu pude fazer para impedir que mais uma tragédia aconteça. Depois, eu me ocuparei de descortinar as sensações trazidas pela memória ainda turva, pelas visões horrendas de um braço que me envolvia o abdome, antes de eu sentir o caminhão chegar...

Oh, deixe-me tentar salvar uma família, compensar a mim mesma o mal que eu provoquei...
Não posso me negar a, antes de qualquer coisa, descobrir que EU provoquei um evento muito triste, que enche de amargura toda a raça.
EU estou tomada por um fluxo intenso de um azedume que me preenche toda, principalmente depois de me deparar com a iminência de outro acontecimento que poderá tornar pior a vida neste planeta: a morte de um cão cuja dominação parece alterar o sentido da "superioridade" humana sobre os animais.


Um cão que canta e, assim, junta-se a nós por laços inimagináveis pelo primeiro predador humano que pensou, "eu posso cercar e tratar esta cabra selvagem, controlar sua vida de modo a que ela me forneça alimento, a mim e aos meus, enquanto durar sua vida". Entre Jonas e Jackson não há controle, há interdependência, que é a base das relações na natureza.

Sinto-me oprimida por um mal da raça.
Sei que não terei para onde mais fugir e estou fraca.

O que quer que eu tenha feito não é pior do que o que este jovem faz de mal a Jonas e a Jackson. Ao tentar salvá-lo, estendo uma mão a tentar também salvar-me... de mim mesma.

Depois que eu souber que Jackson está bem e a salvo com jonas, estarei preparada para enfrentar meu drama, assim o espero. Até lá, quero mergulhar, como uma lontra, pela escuridão deste rio que flui e deixa à minha volta uma mancha verde escura e espessa, amarga e triste, a me mostrar que uma desgraça nunca chega sozinha.

SMS

GUTA,
ONTEM ROUBARAM O MEU JACKSON.
FOI MUITO RÁPIDO, EU NÃO VI O RAPAZ LEVA-LO.
NÃO SEI O QUE FAZER.
NÃO ESTOU ME SENTINDO BEM.
POR FAVOR, AJUDE-ME!

sábado, 13 de dezembro de 2008

Águia cobreira

A morte anuncia-se antes de chegar. Não se denuncia, porque ela tem o direito de ser Morte. Alguém tinha que fazer o trabalho difícil.
A quem cabe ordenar sua vinda, se por acaso sobre sua vontade couber qualquer ordem?

Eu escapei dela. Perguntaram-me hoje: "você estava sozinha na moto, aquela tarde?". Meu Deus, eles não me perguntariam isso, se eu estivesse sozinha. Alguém morreu naquele acidente.

Eu não sei o que pensar, o que fazer. Sinto vontade de gritar.
Eu vou gritar!

Eu não quero ver o que eu tenho que ver. Eu vou me contorcer nesta cama, sentir a forte dor e acentuá-la, certamente irão me anestesiar. Mesmo dormente, estarei como se pendurada por um gancho, uma Prometeu com a perna cravada de espinhos. Quero arrancar esses aqui com a mão.
Veronika chegará em minutos e eu estou acompanhada de uma enfermeira e os psicólogos em atitude vigilante, sentinelas de meu drama e da raça humana inteira. Todos perderam agora algo significativo em seus destinos. Não sou a única vítima.

Estamos todos de luto. A morte de alguém muito amado. A minha morte... Ah, preciso...

Sou a felina que perdeu seu filhote aos búfalos. Sou a rã comida pela cobra, por vigança do gafanhoto por ela comido antes. Sou a vítima e a algoz de minha própria desgraça. A leoa derrubada por um grupo de ienas.
A águia cobreira, que perdeu seu ovo a um abutre e observa a serpente que irá comer, para manter-se viva e deixar

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Ratazana

Eu também já tive um animal de estimação. Um cão, Tupã. Nome de Deus a um animal um pouco sisudo demais.

Eu me lembro de certo dia ter pensado que Tupã era um ser inútil. Ele não desempenhava, vivia apenas para comer e dormir.
Passei, por um tempo, a ignorar seus latidos e grunhidos, a achar que era vazia de sentido a sua ranzinzice atabalhoada demais para um pequenês. Mas, o que poderia dizer um cão que não aprendeu a fazer algo de útil ou engraçado?
No auge de minha juventude abastada e sem turbulências, deixei de rir de suas trapalhadas, perdi o interesse por seu chamado ao carinho e passei a discriminá-lo na presença da família e dos amigos.

Ele sentiu este meu distanciamento e também alterou seu comportamento... para com o mundo. Parou de comer, sentava-se no canto da sala, humilhado e largado à própria sorte.
Sim, eu o discriminei por ser inútil. Hoje, eu me pergunto se o amaria se ele fosse um Jackson. Eu rio, porque ele não era um Jackson, uma vez que eu não sou um Jonas.

Eu custei dias até perceber a angústia de Tupã, e para esta história não ser mais triste, ocorreu de eu ter sido a primeira a notar seu emagrecimento. Ninguém mais em casa se importava com ele.
Naquele dia, em que eu o mimei e o acolhi em meus braços novamente, eu percebi que ele merecia meu respeito por ser um velho cão imprestável que parecia ressentido pelo não reconhecimento de sua existência.
Afinal, pensei eu hoje, ele não chegou a ser um Jackson por minha culpa: eu não fui uma criança como Jonas.

Cresci privilegiada pela premissa do arbítrio, fui tocada pelo direito à fartura. Os animais, para nós, eram objetos valorizados pela sua função decorativa - como os cavalos da quinta, nos quais apenas meu pai e meu irmão montavam, pelo prazer de se sentirem mais másculos. Em casa, os dois cães que criamos faziam parte da mobília ou da nossa coleção de brinquedos.

O primeiro cão, Felix, foi anterior a mim e viveu apenas dois anos com meu irmão e fugiu. Tupã viveu conosco por doze anos. Morreu de um infarto fulminante três anos após o dia em que notei sua tristeza e lhe prometi companhia até sua morte, em respeito à sua maturidade de cão doméstico, vazio e ressentido.
Cumpri esta promessa e, depois dele, não criei nenhum outro animal; pesou-me aquele compromisso com Tupã.
Naquele momento, sentia-me atada por uma obrigação, hoje sinto-me envergonhada deste sentimento. Fui desrespeitosa e, cumprindo nosso hábito indecente, culpei o cão por sua prórpia escravidão.

Agora, estou eu cá sentindo remorso.
Remorso por haver mal-tratado Tupã, remorso por não conseguir ultrapassar esta dúvida e descobrir, de uma vez por todas, o que me falta lembrar da festa de aniversário de Felício.

Felício... Tupã, meus mistérios e minhas dores.
Hoje, sou novamente a caça. Sinto-me com a frivolidade inocente de uma rata, antes de ser abocanhada pela cobra e sou também o peixe a ser comido pela rata.
Sinto a dor dos que terão que se entregar.

Sou quem desprezou Tupã, sem perceber que a vaziez era minha.
Jamais caberia a Tupã adivinhar-se cão frente a minha humanidade presunçosa e idiota.
Ao contrário do peixe, que reconhece a ratazana e desta, que reconhece a serpente, Tupã deixou-se comer por uma certeza ancestral, segundo a qual para os cães - como para todos os animais, em princípio - seria vantajosa a dominação pelo humano.

Naquela tarde, Tupã explicou-me a sua perdição e a sua desonra. Eu admiti sua permanência em minha vida, contudo desmereci sua animalidade. Fosse hoje, reconhecer-mo-nos-íamos um no outro, como Jackson e Jonas, ou eu somente o ensinaria alguns truques e o levaria ao cooper de final de tarde?

Ah, se eu soubesse o que fazer com a obrigação de ser solidária, se eu houvesse aprendido a amar o que me cercasse, se eu conseguisse, ontem como hoje, enxergar algo para além de minhas pequenas necessidades, sim, com certeza, eu saberia responder ao que me perguntam os médicos e detetives. E Tupã seria a lembraça de um amor simbiótico e fraterno entre uma adolescente alegre e seu cão cheio de dúvidas.

domingo, 7 de dezembro de 2008

A escaravelho

Os recônditos e tortuosos caminhos da redenção: de ser abissal a escaravelho, exemplos de que a sombra é o reverso imprescindível da luz.

Tenho dormido bem mais que o usual, nos últmos dias, por isso tenho escrito e desenhado menos. Normal, dadas as pressões física e psicológica. A primeira, resultado do trabalho das placas de platina a fazerem seu trabalho de restaurar minha perna e a última pela cada vez mais constante cobrança de todos para que eu restaure determinada centelha de minha memória recente.

Então, pensei que provavelmente minha dificuldade resulta do fato de eu estar perdida neste trajeto em que me vejo transitar lenta e forçosamente, desde que acordei do coma, após o acidente.
Pelo que percebo do que vejo em minha própria situação, toda necessidade de que eu me lembre do que quer que seja deve-se ao fato de eu haver provocado esta desgraça. Estou sozinha, destroçada e dolorida por minha exclusiva responsabilidade. Sendo assim, eu me pergunto: o que guardará para mim o meu futuro, depois que eu descobrir esta cortina de minha memória?

Sonhei que eu estava dependurada pelos braços, a perna a pingar sangue e minha boca tapada por pano embebido em vinagre e sal. Ah, acordei fria de medo!

Com certeza, são estas sensações que me atordoam e me impedem de recobrar a memória. Não consigo facilmente, depois de senti-las, estabelecer qualquer raciocínio, ou ao menos consigo me ater à urgência de me lembrar... Tudo me apavora e, quando estou assim, completamente paralisada pela angústia, lembro-me de Jonas, Jackson e dos filmes sobre animais que há meses tenho assistido.

Juntos, eles formam a senha para que eu possa conseguir ultrapassar este imenso obstáculo feito de asfalto, sangue, dor e sombra.

Penso que a aproximação entre Jonas e Jackson seja uma artimanha do destino, para a redenção de ambos, porque a adaptação dos seres a este ambiente se dá de formas bastante distintas.
Se julgarmos as estratégias naturais para acomodação dos seres em seus destinos a partir de uma moral humana, podemos acreditar que haja nelas alguma injustiça ou imundice. Do mesmo modo que eu jugaria inaceitável o trabalho duro do menino e do seu cão, eu tenho o nojo como meio de comunicação com os seres que se posicionam no que para nós seria o último lugar na cadeia evolutiva. Penso nos abutres e nos escaravelhos.

O primeiro, necrófilo alado, oportunista, barulhento e feio é um alvo perfeito para nosso julgamento atroz. Sem ele, entretanto, o mundo já não comportaria toda a matéria decomposta, descartada pelos animais, em sua luta cotidiana pela sobrevivência.
O que seria das populações que por hora sofrem com uma terríel enchente, se não fossem os urubus a comerem a carne podre do gado morto no dilúvio? Até consigo escrever uma máxima: todo recomeço é incompleto sem o término do que foi iniciado antes.
Para que a vida permaneça na Terra, faz-se necessário o trabalho dos abutres.

O mesmo pode-se dizer sobre os escaavelhos. De todas as cores e tamanhos, alimentam suas larvas com excrementos. Se um búfalo confia no trabalho de um vira-bosta para completar sua digesão e ajudá-lo a cumprir sua obrigção para com o planeta, nós, humanos, sentimos asco, quando nos lembramos de sentir por eles alguma coisa.
Quão hipócritas somos! Estaríamos cobertos de merda, sem esses bichos que, ao se posicionarem neste patamar da cadeia alimentar tornam possível nossa permanência neste planeta, ao tempo em que se transformam, eles próprios, em seres imortais pela natureza de seus trabalhos.

Os milhares de anos utilizados pelo tempo para estabelecer esta teia de relações e interdependências são equiparáveis aos meses em que me encontro neste limbo forçado. Depois daqui, estarei em outro ponto da minha rede social, fomentarei outros sentimentos nas pessoas e terei que reaprender a viver.
E se eu acabar por ser alvo e um julgamento feroz? E se cortarem a minha cabeça pelo que quer que eu tenha feito? E se não houver justiça diante da consequência do meu ato?
Ah, o que eu perdi naquele acidente, além de minha mobilidade?!

Sim, hoje estou aqui, escarevelho levada pelas chuvas, a buscar calor na lâmpada acesa.
Minha lâmpada, Jonas e Jackson, são minhas luzes.
Confio neles para ultrapassar este ciclo de horror em que me encontro agora.

sábado, 6 de dezembro de 2008

SMS

Guta, como vai?
ontem e hoje foram dias bons para mim e minha família.
Estamos contentes e animados com tudo.
Parece que as pessoas estão mais generosas com a gente.
Amanhã, eu lhe ensino a fazer um cachorro ficar inteligente
:)
Vc é minha fada.
Bjo.
Jonas.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Ser abissal

Nunca chegamos à verdade sobre os fatos. Ao menos em minha sociedade... A dúvida é nosso pecado original ou o castigo até o apocalipse.
Continuam as imagens da enchente. Ao lado de guerras particulares, assaltos espetaculares e bajulações, predominam as informações sobre a tragédia. Compadeço-me da desgraça daquelas populações, porém não posso deixar de me envergonhar da nossa alienação sobre as reais causas das catástrofes naturais.
Sempre procuramos nos destacar da natureza e, no reverso de nosso compadecimento pelo semelhante, antevemos a nossa reação ignota: culpamos a natureza pela tragédia.

Sinto como se a humanidade vivesse numa amnesia semelhante a esta que me acusam de estar acometida. Ontem, a psicóloga repetiu que há algo de que eu não consigo me lembrar, daquela tarde do acidente. Faço esforço, procuro rememorar cada instante daquele dia e nada parece faltar.
A festa, o vinho, os amigos, a moto, o carro em minha direção e eu agora aqui... O que falta?

Veronika diz que talvez eu esteja complicando tudo. Ela acha que estas minhas elucubrações sobre animais são confusas e disse ainda que Jonas pode ter-me embaralhado toda por dentro. Como assim? Tudo faz tanto sentido na simplicidade desta criança.

Jonas conhece o segredo da boa sobrevivência. Digo, ele tem um mundo particular que se completa em si próprio. Ele e sua família são autônomos e solidários entre si. Como podemos considerar este modo de vida selvagem? Como não justificar o fato de Jonas trabalhar arduamente, mesmo com seus poucos treze anos e uma cardiopatia que pode matá-lo?
Viver e morrer para Jonas são a mesma coisa; ele está seguro de sua relevância neste seu mundo próprio. Ele acredita no futuro, nesta vida e para além dela.
Ele não precisa de nosso "sistema", ele está certo da predominância dos bons sentimentos. Ele sabe que, à parte deste nosso "sistema", nós somos confiáveis uns aos outros, na medida de nossas necessidades.

Sim, porque Jonas também sabe: o que comanda nossas emoções é o interesse e a satisfação de nossas necessidades. Por aquele e por estas construímos as nossas leis e, para escamoteá-los e permitir o direito ao mando por alguns contra todo o restante, redigimos as sacrossantas metáforas religiosas.
Para que mais serviria a religião, senão para nos fazermos aceitar a dominação política ou econômica?
O intrigante é que, ao erigirmos as nossas civilizações, transferimos distocidamente a nossa vida selvagem à nossa vida "social", em vez de termos conseguido evitá-la. Nossa selvageria é maior hoje, do que na era das cavernas, apesar de toda a tecnologia.
Aliás eu, escrevendo para um blogue, num alto de prédio, isolada do mundo apenas por paredes de vidro, com a perna destroçada, religada por aparelhos de platina, sou a última pessoa isenta para proferir qualquer blasfêmia contra as maravilhas da inteligência e destreza humanas. Devo a elas a possibilidade de estar viva. Por uma mordidela de filhote de tigre, um filhote de empala pode morrer, se tropeçar e cair na fuga. Porém, eu confirmo que a transferência é distorcida, porque destruímos a capacidade de defesa dos mais fracos: em nossas selvas, eles sequer podem fugir.

Veronika perguntaria: "o que isso tem a ver com sua situação? Por que não se concentra no que você passa agora?" Eu lhe responderia: deixe-me caminhar pelos meus caminhos tortuosos! Eu confio em Jonas e Jackson como minhas lanternas.

Estou como um ser abissal. Este aquário suspenso é minha fossa oceânica e há um outro ser que veio me emprestar sua luz, para eu percorrer esta zona escura. Este ser é Jonas e a sua luz é Jackson.
Eu, um peixe transparente, uma bolha biológica tenho agora, finalmente, a oportunidade de me ver. É preciso calma, eu não quero me arvorar a concluir o que quer que seja. O alívio que Jonas me traz , este conforto ao desobrir que tenho todo o tempo do mundo, eu quero senti-lo intensamente, quero experimentar desta calmaria aqui nesta planície submarina, onde me sinto pressionada e perdida, como se eu fosse um estrangeiro nesta área longíncua do planeta.

Devo agradecer ao tempo, que me trouxe Jonas e sua simplicidade salvadora. Deixe-me ir flutuano, aquecida pela luz que, dependurada em minha boca, torna menos aguda esta dor n'alma, esta bomba latente, este ardor submerso em meus sentidos.

Se houver saída deste vale escuro, serão Jonas e Jackson quem ma mostrarão. Não estou me desviando de meu destino, apenas quero compreender melhor esta dor abstrata , intensa e atordoante, antes de senti-la, inequivoca e arrasadoramente.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A hipopótama e a javali

A nossa ciência não vale uma gota de chuva.
Estou impressionada com as imagens de uma enchente na televisão. Ouvir lamentos de um repórter pela fatalidade, sendo que este não se lembra de exigir o reflorestamento que pode prevenir situações como esta. Teimamos em nos isentar das responsabilidades e em nos vitmizarmos, mas não somos inocentes, nenhum de nós o é.
Uma senhora ainda gritou, na reportagem: "olha o pato, coitadinho!" O pato estava dependurado, imóvel, com um galho a lhe atravessar o peito; ele e a árvore haviam sido arrastados pela avalanche.

Somos todos obrigados a cuidar de coisas, objetos a que damos valor e por eles nos comprometemos e aprendemos a julgar as demais pessoas.
Jonas e Jackson, sobre eles eu refleti: eu os teria julgado mal se os visse na praça. Sim, eu certamente sentiria algum asco e, piedosa, sentiria tembém grande angústia por não poder ajudar o cãozinho.

O que Jonas vem me mostrar é que este julgamento é parcial. Não se pode avaliar a conduta de alguém sem se conhecer a sua história e o seu ambiente social. Jonas e Jackson formam uma família, a partir de um sólido acordo tácito. Não falo de amor, refiro-me à assunção da mútua dependência, do mútuo interesse.

Jonas me envia mensagens pelo celular da família, há o carro da família... O irmão de jonas se casará, haverá um outro carro e um outro fogão para a família; os pais passarão a viver às suas custas e jonas se casará e haverá outro carro a substituir o de seus pais idosos.

Sobrinhos e netos espalhar-se-ão, formarão outras famílias e este cilco vem se repetindo há milênios, porém corre agora risco de deixar de existir, porque não admitimos o nomadismo e a vida livre de famílias profícuas e instituídas sob uma tradição que se perde na longa trajetória de ancestrais artistas mambembes que atravessaram continentes e se disseminaram pelo planeta. Jonas é uma centelha, a última folha de uma árvore frondosa.

Entregamos nossas potencialidades nas mãos de poucos de nós - meu pai dentre estes. Eu, filha de capitalista; eu, isolada neste quarto suspenso, com paredes de vidro e oxigênio controlado; eu, esta mulher envergonhada, descubro a simplicidade com que tudo acontece na vida.

A enchete, a caçada selvagem, dois fenômenos distintos, porque a primeira pode ser uma resposta aos nossos desmandos, a outra, não, é a amostra cotidiana e necessária da fragilidade da presa e do predador, a linha da interdependência, do equilíbrio.

Eu, com minha enchente particular, percebo a superficialidade deste espaço, de todas as minhas memórias e revejo o lugar do sentimento, das emoções.
Amor como eu amava é expressão de uma marca do meu tempo: assimilar a dependência em relação ao outro como uma obrigação. Poucos amores e amizades escapam desta triste regra: usar o outro para proteger a minha fantasia de natureza: eu, meus amores e amigos levando a vida, a vida barata, simplificada pelo dinheiro e pela sensação de haver nascido para o bem bom.

Agora, estou aqui, seca e afogada neste colchão d'água, acostumando-me às dores que passei a sentir e que sentirei pelos próximos anos, descobrindo que a minha história me torna inferior a Jonas e toda sua lógica familiar. A vaziez de minha existência deixa-me menor que Jackson.

Não sei onde isso vai parar, mas estou tranquila, apesar dos acontecimentos estranhos. Talvez sejam os remédios...
Hoje, esteve aqui nosso advogado de família e me fez assinar papéis, para me representar numa ação sobre o acidente. De que ele tratava, não me explicou bem...
Estou acuada, perseguida, abandonada. Sinto falta de Lúcio, já sei que ele não virá, algo mo diz. Estou tensa, uma hipopótama na jaula é levada a esperar por algo que ela suspeita nunca mais virá.

A javali, em cativeiro, transforma-se em porca, passa a comer o que lhe dão e a parir suas esperanças. Cada filho que ela expele poderia voltar a ser javali e, quem sabe... Não sabe mais, esqueceu-se a porca de sua juventude javali.

Eu espero, eu quero saber e descobrir. Como gostaria de haver parido Jonas e que ele nos trouxesse um Jackson! Contudo, não é assim, as pessoas são insubstituíveis. Jonas era algo necessário ao meu aprendizado.

Jonas é melhor que eu, Jackson me ensina a viver neste aquário, ele descobriu como se fundir ao outro e desta simbiose ocupar seu lugar no mundo. Tornar este mundo seu por meio de outro ser. E para esta realização não adiantam cálculos, ou regras. Há que se deixar educar pelos ditames da natureza.

Sinto-me ligada a Veronika e estou preparada para admitir que me interesso por ela, antes de a amar. Eu me sentia mais ou menos assim com um meu amigo... Onde está Lúcio? Por que ele não me vem ver?