quinta-feira, 20 de novembro de 2008

O vôo da pinguim

Venho de um coma.
Consigo dizer apenas que eu sofri um acidente terrível, durante a festa de aniversário de Lúcio. Eu não me lembro do que aconteceu. A minha última memória é a do carro vindo em minha direção.

Agora, estou num hospital. Meu fêmur direito se quebrou em cinco lugares e eu perdi massa óssea nessa perna. As informações são tantas e tão excessivas! Estive mais de dois meses em coma, quebrei a clavícula e trinquei a bacia, estas agora já estão melhorando. Escrevo com certa dificuldade, mas não sinto muitas dores, porque estou com os estímulos de dor controlados por fortes anestésicos.

Há seis dias, senti uma pontada lanscinante, que me subiu por todo o corpo e eu apenas gritei. O médico depois me explicou que eu devo ter sentido dor ao longo de todo o coma; que, embora a dosagem de anestésicos fosse alta, não superaram a força da sensação dolorida, que emanava de minha perna destroçada. Enquanto eu vagava por vales escuros, meu corpo produzia uma dor aguda a qual eu sequer sentia. Agora, para confirmar que estou viva, preciso sentir dor, como um silêncio incômodo e suportável.

Estou assistida por uma equipe que comporta desde médico ortopedista a nutricionista, passando por psiquiátra, três psicólogos e dois fisioterapeutas. Todos estão orientados a me puxarem a memória, extrair alguma informação que eu não faço idéia qual seja. Vieram aqui dois investigadores policiais, que me fizeram o favor de descrever o que ocorreu naquela tarde de início de agosto.

Disseram-me que fui lançada a quase dez metros do local do acidente. Disseram também que eu tinha algum álcool no sangue e disseram que muito sangue rolou pela avenida. Disseram-me que eu atravessei um sinal amarelo e que fui pega por um carro que não freiou enquanto vinha em direção perpendicular. Perguntaram-me se eu me lembrava com quem saí da casa de Beth e, claro que eu saí sozinha de lá.

Lembro-me de estar animada para pegar um dos nossos filmes da faculdade em minha casa, lembro-me do vinho - logo eu, que não sou ligada a bebidas - lembro-me de ouvir Veronika pedir para eu não sair e me lembro do cachorro de Beth, que latia com olhar fixo em meu olhar. Latiu alto e claro, acho que agora sei o que ele queria me dizer. Não me lembro de outros detalhes, minha lembrança pula deste ponto da ação na casa de Beth à exata hora em que o carro se chocou contra mim e eu voei, mas não me lembro de ter voado...

Se voei, não o fiz como uma águia, uma pomba, ou uma beija-flor. Fui lançada ao ar, como uma senhora pinguim perseguida na enseada por um leão-marinho e jogada às pedras por este, para desgrudar sua pele e facilitar a ele o acesso à carne suculenta. Porém, não havia leão-marinho, não era comer a minha carne que se queria neste evento.
Minha carne escapoliu com o choque do meu corpo no chão, minha perna está mais fina, minha memória é literalmente um fio obtuso.