sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A raiva da pomba

Sinto a raiva triste das gazelas em meio a uma caçada de leopardos. A raiva desconsolada da lula abocanhada pelo tubarão.

A raiva sem remédio, a raiva dos injustiçados, a raiva dos mais fracos.
Sinto queimar em mim um remorso auto-comiserado por minha perna partida, por este ambiente hospitalar no qual eu tive que ser instalada, isolada, mantida compulsoriamente, como numa torre de sacrifícios.

Sinto a raiva do veado abocanhado pelo crocodilo, o ardor da raiva do cardume inteiro de sardinhas rodeado por um cardume de golfinhos famintos. Sei agora o que é estar dominada e obrigada a dar à vida um destino insólito.

E ainda este remorso estanho e sem justificativa aparente, uma sensação de que perdi alguma coisa grandiosa. Porém, deve ser assim mesmo: na boca da fera a escuridão envolve o corpo e a alma do animal caçado, de modo a não lhe restar um recanto íntimo preenchido, por algo que não seja um vácuo de medo, incerteza e dor.

Sinto a raiva da pomba capturada no ar por um gavião, em plena metrópole.
Sinto a raiva da ratazana comida pela serpente, multiplicada pela raiva da serpente a ser pinçada pela água serpenteira. Sinto agora a raiva dos que vão, incapazes de reivindicar outra alternativa. Fui pega, caçada, deglutida. Rebatizo-me: Guta, a dilacerada.