segunda-feira, 24 de novembro de 2008

O orangotango e a Leoparda

Ainda escrevo com dificuldade, com a mão esquerda. Mas, tenho todo tempo do mundo, enquanto estou acordada.
Estou absolutamente só com a minha dor.
Às vezes, eu a desafio, faço movimento como que para provocar a dor. Entretanto, minha perna precisa doer. Nos poucos momentos em que estou acordada, preciso sentir dor. É a única maneira de eu e os médicos termos certeza de que o que restou dela ainda está vivo.
Desafiá-la, contudo, é uma expressão de raiva minha.
Claro que não posso ir muito longe, mas basta a tentativa de levantá-la para que eu sinta uma pontada longa e atordoante.

É uma dor que me atravessa em todos os sentidos. Eu já não grito, sinto-a com dignidade. Os médicos não notam o que faço, pois não tenho forças sequer para movê-la um milímetro para cima...
Não consigo explicar esta dor, nem meu gosto por esta reação idiota ao que me ocorreu, na medida em que ela não consegue me acordar para a vida.

E meu trabalho? Eu sei desenhar? Ao se ver o meu corpo, não se imagina que seja o corpo de uma hábil desenhista. Minha mão pesada de hoje mal delineia uma linha num papel branco... Conseguirei, com o tempo, me lembrar de como era? (Do que eu tenho que me lembrar?)

Jonas... Que suavidade este menino! Como sua pureza me anima a continuar vivendo, eu o farei herói! Vou financiar seu tratamento completo, decidi-o hoje. Ele poderá crescer, escolher seus caminhos, adestrar outro Jackson, quem sabe? Ou quem sabe um arquiteto renascerá com meu gesto... caridoso?

Não, eu farei isso por se tratar de Jonas, o menino que me trouxe luz, que tem um cão maravilhoso que canta com ele, que vem de uma família de artistas pobres, que viaja pelo mundo a teimosamente sobreviverem da única atividade que sabem desenpenhar. Juntos, a bonecos ou animais.

E o ajudarei porque eu precisava, há quase um ano, de uma resposta para a minha angústia existencial e esta resposta me veio por ele e Jackson. Vejo que eu estava premonitória e que minha ansiedade era para conhecê-lo. Tive que chegar aqui, perder minha perna, quase morrer para conhecer este menino, Jonas. Sou-lhe grata e lhe retribuirei o favor com sua vida. Sua vida pela minha.

Uma retribuição é uma troca. Eu poderia achar meu sentimento egoísta, porém mantemos nossas relações pelo interesse e precisamos admitir isso. A parceria é um contrato, quase um negócio, o que torna uma parceria diferente de determinada outra é esta ponte aberta aos sentimentos, que extravasa e alcança o outro, transcendendo o valor do favor em si, assim surge a amizade.

E nesse curso de coisas também se dá as relações entre os bichos. Não há apenas a força físicá, há também o interesse. Em suas formas mais elementares, em situações em que mesmo os bichos se comportam em desacordo com as reações que ele próprio espera de si.
Por exemplo, eu vi uma imagem impressionante num documentário hoje. Uma fêmea leopardo já na fase da emancipação, numa de suas primeiras caçadas, captura uma fêmea orangotango e a leva ao seu esconderijo, numa árvore. Ao ajeitar a sua comida no galho, vê que algo inesperado acontecera: ela deu a luz um bebê macaco.

O que ela fez? Deixou de lado o corpo da mãe e correu a tentar manter o filhote na noite fria.
Ele a procurava como mãe e ela o acolhia como tal.
O que a fez agir assim, um evasão repentina e precoce à abnegação do amor materno? Eu penso que ela viu ali uma vida acontecer pelo nascimento daquele pequeno e indefeso animal.
Isso não estava no roteiro, ela não sabia que isso poderia ocorrer. Diante do impasse, a inexperiente caçadora optou pela acolhida, aquele filhote estava mais próximo dela do que o desejo de comer a carne de sua mãe. Ela apenas conhecia o valor de sua vida de filhote, não saberia fazer outra coisa àquele bichinho que teimava em continuar vivo, depois de nascer naquele remoto galho de árvore.

Além do que, lembrou-se daquela fuga de um macho orangotango que, adulto, poderia matá-la num lance. Ela era um filhote e foi poupada pela astúcia da mãe, que chegou e a levou a sob o tronco de uma árvore desabada. Naquela noite, não parecia ter-se reconhecido na posição contrária.

Preservar o filhote orangotango não seria um meio de se aliar ao oponente? Talvez não, talvez fosse mesmo a sua consciência a aconselhando a cuidar; os filhotes, antes da caça, aprendem a viver. Ela tentou trocar sua vida pela do filhote.

O pequeno orangotango morreu de frio e machucado pelas desastrosas tentativas da leoparda de aquecê-lo. A felina, por sua vez, comeu a carcaça da mãe e abandonou, no galho da árvore, o filhote morto que não conseguiu criar.

O que eu vou fazer com Jonas é o contrário desse ocorrido entre dois animais tão díspares. E exatamente por serem tão distintos guarda suas semelhanças. Eu preciso manter Jonas vivo para fazer, como a leoparda, minha vida fazer sentido de agora em diante; porém, ao contrário dela, eu não tenho necessidade de me alimentar de Jonas, ou de Jackson, mas sempre fui ameaçada pela visão de sua vida, a qual me acalenta tanto hoje.

Será daí que nasce o amor? Farei isso por Jonas... por amor. Igualmente, amor a ele e a Jackson e a todos os cachorros que porventura vierem a ser abençoados com a companhia deste garoto absolutamente maravilhoso.

Não aguento mais escrever... Há pouco, veio a enfermeira, me viu a escrever e perguntou se era alguma revelação o que eu escrevia. Eu ri, e disse, sim, muitas revelações. Por dentro, chamei-a cínica.

Estou há quase uma hora escrevendo estas linhas, como me são difíceis cada uma delas.
Jonas veio amortecer esta dor interna e esta dificuldade física.
Eu o amo e falaria sobre ele por horas, mas a enfermeira me traz a mão impiedosa que me tapa os olhos, um remédio infernal direto na veia, que me toma aos poucos e me dá condição apenas de fechar a tampa do computador, para que ninguém leia o que eu venho escrevendo.
Admito que lançar mão destas sensações pela escrita me ajuda bastante, embora nenhuma revelação, tão desejada, me tenha ainda surgido por aqui.