sábado, 29 de novembro de 2008

A fome da leoa

Eu sou uma das que dariam moedas ao Jackson. Ou essas moedas seriam ao Jonas?! A Jackson e a Jonas também.

Estes dois formam uma parceria consentida e ensaiada, esses dois se amam como se amam duas leoas de um mesmo grupo, comprometidas uma com a outra durante a caçada e a criação dos filhotes.

Ao tempo em que estabelecem esta parceria, menino e cão estão encaixados num compromisso maior, como aquele que une as leoas ao seu grupo familiar: em torno de Jonas e de Jackson e do seu número de rua, há uma família pobre, unida e solidária. Vejo neste círculo de pessoas e animais um modelo de relação que poderia mudar sobremaneira o modo como convivemos com os bichos.

Se considerarmos que a sociedade humana e sua intervenção sobre a natureza é uma fato sem possibilidade de retorno, poderíamos pensar em meios de dominação que não usurpasse o bicho, mas que lhe permitisse até, quem sabe, usufruir das maravilhas de um mundo humano repleto de inovações. Por exemplo, Jackson, que aprendeu a cantar e é feliz por isso.

O respeito de Jonas por ele e o favorecimento recíproco entre ambos, para mim, é um sinal de que seguimos um caminho evolutivo errado, em que subjugamos os bichos, a partir da presunção de que somos, de algum modo, superiores.

A história de Jackson com Jonas remonta à infância de ambos. Enquanto um aprendia a tocar acordeão, o outro aprendia a colocar seu uivo numa canção, ao tempo em que ambos aprendiam a aprender e a ensinar. Jonas se refere a jackson como um amigo, um companheiro de trabalho, um mestre. Ele diz que Jackson é do tipo de cão que quase fala, no que eu lhe disse que ele é um cão que canta.

Porém, há sempre um infortúnio e, neste caso, o tempo nos mostra a cara desta dor iminente. Se os treze anos de Jonas ainda pode ser considerado uma criança, Jckson, por sua vez, aos treze anos é um velho. O cão está perto da morte e Jonas tem um desafio terrível pela frente: encontrar e ensinar o canto a outro pequeno fihote de cão.
Ao comentar sobre isso, hoje aqui, no hospital, Jonas perdeu a voz. Para ele, é quase impossível desvencilhar sua rotina da rotina de Jackson. O que ele vai fazer? Começar tudo outra vez. Ele me disse que a cadela França, neta de Jackson, dará a luz filhotes nos próximos dias e que, desta ninhada, surgirá - ele tem certeza - o substituto de Jackson.

Como é anacrônico ouvir uma criança feito Jonas falar sobre morte! Esta palavra em sua boca ganha contornos carinhosos, ele se refere a ela em voz baixa, por respeito ao seu grande companheiro. Eu senti profundamente a dor que se esboça no coração de Jonas, compreendi-a e constatei que ela vai muito além da perda financeira que esta troca poderá provocar em sua família.

A morte é também outra companheira de Jonas, o que provavelmente o faz sentir a sua própria ao se referir à morte do seu amigo canino.

O novo filhote terá o dom de compreender o lugar e a função do seu uivo. Ele precisará descobrir o significado de sua música e encaixá-la no significado da música de Jonas.

Há uma inteligência submersa na mente do animal, a qual Jonas poderá despertar, quando testar com seu novo parceiro o método que sua família utiliza, há gerações, para tornar este sonho de parceria possível. Ao adestrar deste modo seus filhotes, esta família parece anular a dominação pérfida que permeia a nossa relação com os demais bichos.

Por isso, Jonas não sente culpa ou medo da morte. Jonas sabe que não há nada porque se preocupar, porque a morte e a vida são verss de um memso poema, não há mistério. A história de sua família lhe revela que os laços de amor são eternos e que as parcerias vitais, como a sua e a de Jonas, os acompanhará aonde quer que biegem seus espíritos. Jonas demonstra que a bondade gera a liberdade de se sentir pacífico diante das curvas da vida. A morte para Jonas é, na verdade, algo de que ele não quer ou precisa escapar.

Eu, do meu lado, ao vislumbrar as marcas deste acidente, sinto-me péssima. Eu sei que sou responsável por cada minuto de dor, por cada fincada lanscinantge, por cada vez que sou abordada por um médico ou psicólogo a me perguntar sobre algo de que me esqueci... sou, inclusive, responsável pro ter que receber, neste estado, policiais, que querem investigar minha intencionalidade...


Veio-me à mente a constatação de que eu daria moedas ao jonas por sentir culpa por não ser como ele.

Ah, meu Deus, como me sinto atormentada por este sentimento de responsabilidade! Como eu gostaria de alterar este acontecimento e reverter esta dor na alegria livre que Jonas sente com sua inocência, do mesmo modo que eu gostaria de compreender e aceitar que não há intenção maudosa na caçada das leoas famintas ao filhote de búfalo.
De um modo misterioso para mim, o amor de Jonas por Jackson equivale à fome da leoa pelo búfalo.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

ovo

Faço um enorme esforço para escrever agora.
Senti mais dores que o normal nos últimos dias, escondi esta piora dos médicos e fui uma infecção "absolutamente evitável" levou ao aumento da dosagem dos remédios, que aumentam meu sono e este gosto amargo e espesso em minha boca.

Portanto, desde ontem tenho a sensação de estar preenchida por um limbo de desolação, como um quarto tomado por fumaça.
No sermão que recebi do ortopedista, descobri que este aparelho infernal parafusado à minha perna ficará comigo por mais dois anos, pelo menos. Ah, meu destino próximo será de extrema provação!
Mal acordei e vieram os psicólogos, um casal sorrateiro e risonho, a insistir sobe minha memória. Pela primeira vez, senti que o que eles me escondem é algo muito grave, ou serei eu que lhes escondo realmente alguma informação? Eles sempre chegam a fim de saber deste algo e eu nunca lhes entrego nada concreto.

Eu não consegui lhes falar sobre outra coisa, a não ser sobre minha mais nova descoberta, sobre a razão de eu ter tido forças para suportar a dor que aumentava dia a dia, sobre esta luz que estampa alguma alegria no futuro obscuro que se desenha à minha frente.

Jonas surge em minha vida de modo a justificar tudo de bom e de ruim que me possa ocorrer de agora em diante. Jonas serve para que eu tenha fé na humanidade, na possibilidade de que o bem algum dia prepondere sobre a maldade. Jonas é doce e ele é cercado de amor.

Até seu irmão, um rapaz de dezessete anos, que volta e meia me pede algum dinheiro para isso ou aquilo, parece ser uma boa pessoa e cobre o irmão com cuidados e carinho.
Ele ficou muto feliz quando soube que eu pagaria pelas despesas do tratamento de Jonas e pela cirurgia. Talvez por isso ele me peça algum dinheiro, e também pela suntuosidade deste quarto. O certo é que eu o neguei sempre e deixei claro que minha ajuda se restringirá às custas do tratamento.
Somos nós, com a arrogância e a presunção, quem estragamos as pessoas simples. Negar-lhe o dinheiro é preservá-lo... de mim?

"O que significa Jonas para você?", perguntou-me a psicóloga. E eu respondi: um ovo. Sim, ele plantou algo em mim que parece ser uma fonte inesgotável de esperança.
Jonas faz toda esta história do acidente fazer sentido. Jonas mantém-se vivo num mundo que não é feito para pessoas como ele, ele tem um dom e esse dom o conecta à sua família; ele trabalha, aos treze anos, com um cachorro adestrado, que o acompanha desde muito cedo; Jonas trouxe-me a certeza de que eu poderei ficar bem. Ele desmoronou um pouco meu mundo de crenças.

"Há alguém mais que lhe cause esta sensação de bem-estar?", perguntou o seu parceiro. Custou-me responder algo, eles continuaram a insistir, até que me caiu uma ficha: Lúcio. Sim, este meu amigo sempre soube me colocar bem, diante de fatos adversos. Se Jonas tem o olhar, Lúcio tem a palavra e o abraço.
Contudo, Lúcio veio sequer me ver, será que ele me esqueceu?

Hoje, este é o maior mistério em minha vida, saber o que terá acontecido a Lúcio. Não consigo me lembrar de aluma briga entre nós, nem de algo que pudesse te-lo feito partir. Ele não comentou sobre qualquer proposta de trabalho no exterior, aliás, ele estava envolvido num projeto sobre arquitetura urbana nacional... O que terá acontecido a Lúcio?

Não acho que Jonas venha a preencher a falta que meu amigo me faz. Jonas vem a somar beleza à minha vida e seria muito bem acolhido por Lúcio, com certeza. Jonas tem aquela candura dos filhotes de tigre, o atabalhoamento atrevido de um pequeno chipanzé, a inteligência e a alegria de um elefantezinho aos pés de sua mãe.

Jonas faz a dominação humana
usual sobre os animais parecer ainda mais cruel.
Jackson tem o privilégio de haver sido amado por Jonas e com ele ter aprendido a viver em segurança. Jackson, que, de início pareceu-me explorado e vilipendiado é, na verdade, um cãozinho especial elevado à condição de artista por um menino sereno e doce.

Qualquer tragédia se torna num acontecimento simples com a presença de Jonas. Para responder àquela pergunta da psicóloga, eu diria, Jonas significa o fim de toda e qualquer culpa em mim.
Jonas é a porta pela qual eu poderei passar com segurança. Ele e Jackson são, hoje, essenciais à salvação de minha alma despedaçada.

SMS

26/11/08 09:16
GUTA,
ESTOU FELIZ D+ POR TER CONHECIDO VOCÊ.
ESPERO QUE VC ESTEJA BEM
E QUE SUAS DORES MELHOREM LOGO.
JACKSON ESTÁ ANSIOSO
POR CONHECER VC TBM :-)
ATÉ AMANHÃ.
BJO,
JONAS.
***

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

O orangotango e a Leoparda

Ainda escrevo com dificuldade, com a mão esquerda. Mas, tenho todo tempo do mundo, enquanto estou acordada.
Estou absolutamente só com a minha dor.
Às vezes, eu a desafio, faço movimento como que para provocar a dor. Entretanto, minha perna precisa doer. Nos poucos momentos em que estou acordada, preciso sentir dor. É a única maneira de eu e os médicos termos certeza de que o que restou dela ainda está vivo.
Desafiá-la, contudo, é uma expressão de raiva minha.
Claro que não posso ir muito longe, mas basta a tentativa de levantá-la para que eu sinta uma pontada longa e atordoante.

É uma dor que me atravessa em todos os sentidos. Eu já não grito, sinto-a com dignidade. Os médicos não notam o que faço, pois não tenho forças sequer para movê-la um milímetro para cima...
Não consigo explicar esta dor, nem meu gosto por esta reação idiota ao que me ocorreu, na medida em que ela não consegue me acordar para a vida.

E meu trabalho? Eu sei desenhar? Ao se ver o meu corpo, não se imagina que seja o corpo de uma hábil desenhista. Minha mão pesada de hoje mal delineia uma linha num papel branco... Conseguirei, com o tempo, me lembrar de como era? (Do que eu tenho que me lembrar?)

Jonas... Que suavidade este menino! Como sua pureza me anima a continuar vivendo, eu o farei herói! Vou financiar seu tratamento completo, decidi-o hoje. Ele poderá crescer, escolher seus caminhos, adestrar outro Jackson, quem sabe? Ou quem sabe um arquiteto renascerá com meu gesto... caridoso?

Não, eu farei isso por se tratar de Jonas, o menino que me trouxe luz, que tem um cão maravilhoso que canta com ele, que vem de uma família de artistas pobres, que viaja pelo mundo a teimosamente sobreviverem da única atividade que sabem desenpenhar. Juntos, a bonecos ou animais.

E o ajudarei porque eu precisava, há quase um ano, de uma resposta para a minha angústia existencial e esta resposta me veio por ele e Jackson. Vejo que eu estava premonitória e que minha ansiedade era para conhecê-lo. Tive que chegar aqui, perder minha perna, quase morrer para conhecer este menino, Jonas. Sou-lhe grata e lhe retribuirei o favor com sua vida. Sua vida pela minha.

Uma retribuição é uma troca. Eu poderia achar meu sentimento egoísta, porém mantemos nossas relações pelo interesse e precisamos admitir isso. A parceria é um contrato, quase um negócio, o que torna uma parceria diferente de determinada outra é esta ponte aberta aos sentimentos, que extravasa e alcança o outro, transcendendo o valor do favor em si, assim surge a amizade.

E nesse curso de coisas também se dá as relações entre os bichos. Não há apenas a força físicá, há também o interesse. Em suas formas mais elementares, em situações em que mesmo os bichos se comportam em desacordo com as reações que ele próprio espera de si.
Por exemplo, eu vi uma imagem impressionante num documentário hoje. Uma fêmea leopardo já na fase da emancipação, numa de suas primeiras caçadas, captura uma fêmea orangotango e a leva ao seu esconderijo, numa árvore. Ao ajeitar a sua comida no galho, vê que algo inesperado acontecera: ela deu a luz um bebê macaco.

O que ela fez? Deixou de lado o corpo da mãe e correu a tentar manter o filhote na noite fria.
Ele a procurava como mãe e ela o acolhia como tal.
O que a fez agir assim, um evasão repentina e precoce à abnegação do amor materno? Eu penso que ela viu ali uma vida acontecer pelo nascimento daquele pequeno e indefeso animal.
Isso não estava no roteiro, ela não sabia que isso poderia ocorrer. Diante do impasse, a inexperiente caçadora optou pela acolhida, aquele filhote estava mais próximo dela do que o desejo de comer a carne de sua mãe. Ela apenas conhecia o valor de sua vida de filhote, não saberia fazer outra coisa àquele bichinho que teimava em continuar vivo, depois de nascer naquele remoto galho de árvore.

Além do que, lembrou-se daquela fuga de um macho orangotango que, adulto, poderia matá-la num lance. Ela era um filhote e foi poupada pela astúcia da mãe, que chegou e a levou a sob o tronco de uma árvore desabada. Naquela noite, não parecia ter-se reconhecido na posição contrária.

Preservar o filhote orangotango não seria um meio de se aliar ao oponente? Talvez não, talvez fosse mesmo a sua consciência a aconselhando a cuidar; os filhotes, antes da caça, aprendem a viver. Ela tentou trocar sua vida pela do filhote.

O pequeno orangotango morreu de frio e machucado pelas desastrosas tentativas da leoparda de aquecê-lo. A felina, por sua vez, comeu a carcaça da mãe e abandonou, no galho da árvore, o filhote morto que não conseguiu criar.

O que eu vou fazer com Jonas é o contrário desse ocorrido entre dois animais tão díspares. E exatamente por serem tão distintos guarda suas semelhanças. Eu preciso manter Jonas vivo para fazer, como a leoparda, minha vida fazer sentido de agora em diante; porém, ao contrário dela, eu não tenho necessidade de me alimentar de Jonas, ou de Jackson, mas sempre fui ameaçada pela visão de sua vida, a qual me acalenta tanto hoje.

Será daí que nasce o amor? Farei isso por Jonas... por amor. Igualmente, amor a ele e a Jackson e a todos os cachorros que porventura vierem a ser abençoados com a companhia deste garoto absolutamente maravilhoso.

Não aguento mais escrever... Há pouco, veio a enfermeira, me viu a escrever e perguntou se era alguma revelação o que eu escrevia. Eu ri, e disse, sim, muitas revelações. Por dentro, chamei-a cínica.

Estou há quase uma hora escrevendo estas linhas, como me são difíceis cada uma delas.
Jonas veio amortecer esta dor interna e esta dificuldade física.
Eu o amo e falaria sobre ele por horas, mas a enfermeira me traz a mão impiedosa que me tapa os olhos, um remédio infernal direto na veia, que me toma aos poucos e me dá condição apenas de fechar a tampa do computador, para que ninguém leia o que eu venho escrevendo.
Admito que lançar mão destas sensações pela escrita me ajuda bastante, embora nenhuma revelação, tão desejada, me tenha ainda surgido por aqui.

Jackson

Acabo de acordar. Agora, são duas da manhã, Veronika dorme tranquila no reservado instalado no quarto, com uma cama, para ela estar comigo nestas noites tranquilas de hospital. Veronika é a pessoa no mundo que mais me compreende e ontem ela me deu mais uma prova disso.

Quando veio me ver, no fim da tarde, Veronika encontrou um carro velho cheio de cachorros e logo se interessou pelo que via, uma vez que sabe de minha fixação por bichos. Ela, então, aproximou-se do carro e lá estava um rapaz, sozinho, guardando os cães e demais pertences. Ao saber pelo rapaz que se tratava de apetrechos de um grupo mambembe e que no hospital estava o seu irmão, que sofre de uma doença congênita no coração e que trabalha na rua, acompanhao de seu cão, Jackson, ela logo pediu para que este rapaz no carro lhe apresentasse à sua família, já pensando no quanto me faria bem conhecer esta criança e sua arte.

Foi então que me surgiu no quarto um menino adorável, Jonas. Aos 13 anos, Jonas é arrimo de família. Seu número consiste em tocar um acordeão e, ao cantar, ser acompanhado pelo seu velho pequenez a uivar. Jonas fala sobre sua arte com grande emoção e pureza, contudo seu olhar é triste, por conta de sua limitação de saúde.

A cada quinze dias, Jonas vem ao hospital, para exames cardíacos de controle. Seu coração bate fracamente e ele espera sua vez de realizar a cirurgia que poderá salvá-lo deste sofrimento. A despeito desta sua doença, ele é um menino esperto, inteligente e muito, muito talentoso. Adorou saber que eu sou ilustradora, quis ver meus desenhos, interessou-se por tudo. Ele me disse que gosta de desenhar e que pretende estudar arquitetura.

Entretanto, sua vida não lhe garante esta oportunidade. A escola não é um espaço frequente em sua educação, tanto por conta de sua doença, como pelas suas responsabilidades em relação à sua família, que viaja constantemente e vive em grande penúria a maior parte do tempo.

O número de Jonas e Jackson é o mais lucrativo, mais até que os malabarismos com poodles que seu irmão, o rapaz do carro, executa. Em relação ao teatro de bonecos que seus pais encenam, então, é que a arte de Jonas se mostra absolutamente indispensável ao sustento desta família.

Eu quis saber de tudo sobre sua vida e sobre sua relação com Jackson. Do alto de sua inocência, ele me disse que Jackson é o cão mais artista que ele e sua família já conhecera e que ambos aprenderam juntos este ofício. Perguntei-lhe como os cães eram treinados e ele respondeu, simplesmente, "eles é que querem aprender. Jackson mesmo, diz meu pai, não saia de perto do acordeão, quando era filhote. Eles nascem pra isso".

Foi como se eu despencasse de um abismo. Como assim, "eles nascem pra isso"?! Eles não são forçados a aprender?, perguntei-lhe. Ele responde que, de jeito nenhum, os cachorros apanham. "Só aprende a cantar aquele que leva jeito e que se aproxima de nós pela própria vontade. Tem que estar no sangue o talento, senão, não tem surra que dê jeito. É como nós, em nossa família todo mundo é artista, vem no sangue."

Jackson então tem talento e vontade. Ele parece ter assumido seu lugar nesta família e suas razões podem parecer estranhas para todos nós, mas não para Jonas. Ele acredita que os cães são os melhores e mais inteligentes amigos do ser humano e que eles, os cães, podem aprender quase tudo porque, embora não falem, conseguem pensar quase como os humanos. Para Jonas, seu cão é parte de sua família e seu carinho ao falar dele sugerem que o respeito é elemento essencial desta relação.

De repente, tudo se reacendeu em mim, apesar das questões veementes e claras que simultaneamente se me revelaram: o comportamento de Jackson seria mais uma faceta da evolução natural? Haveria uma trégua na nossa relação dominador-dominado com os animais? Não seríamos assim tão maus ao implantarmos este sistema hierárquico na natureza, submetendo os animais à nossa vontade?

A inocência e a força de Jonas me abriram uma porta. Acordei tranquila, como se ele pudesse me guiar por esse momento obscuro. Este menino gracioso conhece a dor, a pobreza e o amor de um modo como pessoas como eu jamais poderão conhecer. Marcamos de nos reencontrar amanhã, Veronika pediu à mãe que o deixasse visitar-me diariamente, como um meio de ajudar em minha recuperação. Ela aceitou, sem pedir nada em troca.

Estou completa e felizmente fascinada por Jonas, sua família e sua história. A grande pena é que não verei Jackson tão cedo. Animais não podem entrar em hospitais de humanos.

sábado, 22 de novembro de 2008

Mãe-ave-marinha

Meus períodos de sono têm durado mais de doze horas. Acordo a qualquer tempo e acabo por enontrar os mesmos poucos companheiros, por vezes dormindo, do meu lado: ou minha mãe, meu pai, ou Veronika ou os amigos mais íntimos, aos quais eu pedi que esperassem minha chegada em casa, para voltarem a me ver. Meus irmãos falam comigo online, ainda bem que o fuso deles encaixa em minha agnda irregular.

Lúcio não apareceu por aqui e eu fiquei um pouco magoada com ele. As desculpas pelo sumiço variam: minha mãe disse-me que ele viajou a trabalho, Veronika refere-se apenas a uma viagem, Beth já mencionou uma catapora persistente... Algo de misterioso há nesse desencontro. O que terá acontecido ao meu melhor amigo, para ele não vir me visitar no hospital? Não esperava por isso, ser abandonda por Lúcio. Sem falar na insistência de todos para que eu me lembre de algo que eu não sei minimamente o que seja.


Parti, então, em busca de pistas.
Passei a reler os textos que eu havia publicado aqui, anteriormente. E o que eu vejo: um pessoa a beira de uma revelação, confusa pelas mensagens que o tempo lhe plantava nas sensações; a minha náusea era uma premonição?

O que parece-me claro é que eu estava obcecada pela fatalidade. E os animais me servem muito bem a isso. Porque eles agem e reagem somente diante da necessidade, eles se mantêm obedientes aos ditames da natureza.

Quando se sentem ameaçados, fogem, por medo de não cumprirem sua função maior no mundo, a reprodução. O que muito me impressiona neles é o fato de cada um, assustador ou assustado, ocuparem um lugar e cumprirem uma função na chamada seleção natural.
Não consigo sentir pena dos que são caçados, mesmo das crias, porque eles têm nesta caça uma oportunidade de redenção da espécie.

Por exemplo, os Gnus. Em sua longa jornada fugindo do frio e da seca, atravessam rios, onde são atacados por crocodilos; em terra firme, há os lobos, os leopardos, os leões, as chitas e as hienas. Muitos morrem na boca de uns e de outros bichos, mas estas mortes são sacrificiais, no sentido de que a morte de uns permite a sequência da jornada da grande manada.

Somente é triste o fato de os mais fracos e jovens serem as presas prediletas, por serem mais vulneráveis. E isso nos mostra a dor dos que ficam, sem suas crias, ou sem seus pais.

Vi uma cena num dos filmes documentários que me tocou profundamente. Uma mãe-gnu é atacada por leões, que a comem e deixam somente a carcaça, que depois será aproveitada por abutres. Ali, ao seu lado, diante do cheiro da mãe dilapidada, uma cria berra agora insistente e esperançosamente.
Impressionante ainda estar viva, mais cedo ou mais tarde, seria comida por hienas ou lobos, já que os leões da área saciaram sua sede com a mãe corpulenta.

Cortou-me o coração aquele berro de filhote a chamar por uma mãe morta.
Vi muitas cenas como estas e o contrário também ocorreu: mães e chorar pelas crias mortas e mães a lutar inutilmente contra leões para salvar suas crias. Na verdade, presumo que haja um código secreto entre os animais, que tornam esses acontecimentos compreensíveis por eles, como se uma mãe soubesse que, dentre seus filhotes, boa parte deles cairá sob patas ou dentes maiores e mais fortes.

A manada segue em frente e aquela mãe entrará novamente no cio e dará a luz outro filhote, que poderá também morrer numa caçada e assim é a sua vida.

De repente, ao reler os textos e ao sentir a falta do meu amigo, percebi que agora minha náusea premonitória tornou-se num caminho reto e seguro, de modo a eu me identificar sobremaneira com os dramas dos animais. Contudo, quando ultrapasso o cenário da floresta e visualizo os abatedouros, os maus-tratos a que submetemos aqueles animais que conseguimos domesticar, vejo o quanto fomos vis em relação às ordens naturais, o quanto, por meio dos animais, aprimoramos nosso sadismo e nossa presunção doentia de superioridade.

Isso me entristce, como humana que sou. Não sei exatamente meu lugar nessa lógica que persigo há quase um ano. Agora, presa aqui, a olhar, ora para um remanescente de floresta, ora para a cidade e seus sinais de miséria e opulência, pergunto-me:

onde eu me encaixo, na cidade?
O que eu perdi é o que agora me projeta tão proximamente aos bichos e suas dores ou fui trazida por estes?
Quem sou eu nesta trama?

Onde está Lúcio para me apontar uma suposta verdade e me fazer enxergar, com suas próprias atitudes, que nesta vida tudo é passível de justificativa, que o importate é se deixar ir com a vida?

Eu, que sempre fui uma mulher contente, que sempre fiz o que quis e que sempre fui amada, nunca senti a amargura do abandono, ou da perda. Contudo, vejo agora que eu, ainda que não o soubesse, preparava-me para adentrar por esta porta, para contemplar o mundo por enormes paredes de vidro, com cortinas. Eu me preparava para me comunicar com os animais e descobrir... o quê?

Ainda bem que o meu caminho até aquela mãe morta e sua cria perdida está facilitado pela minha própria morte. Não sei o que restará do mundo a esta nova Guta. Novamente, sou uma menina a descobrir as possibilidades, desta vez limitada pela dor e pela incerteza.

Sim, sou uma mãe-ave-marinha, de um outro filme, que vê seu valioso ovo ser levado pelo abutre, a despeito de seu esforço para detê-lo. Sim, sou esta mãe, que chorou longamente e me mostrou, pela televisão, seu olhar lacrimoso e mais triste, muito triste.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A tigresa solitária

Em todos os cantos deste quarto de hospital há um fantasma olhando para mim: o espectro criado de minha própria história, com esse desenlace furtivo e estarrecedor.

Puseram-me sozinha num grande quarto, com três paredes de vidro. Ao se entrar pela porta, à esquerda, vê-se parte da floresta preservada, ouve-se dela o cantar de pássaros, a música dos sapos e grunhidos, que parecem vir de pequenos macacos. À frente, a floresta vai dando lugar à cidade, seus edifícos e, à noite, preponderam suas luzes e buzinas, até que, pela parede da direita, vê-se apenas a balbúrdia de trens, caminhões e o subúrbio distante.

Sim, sou rica. Meu pai é um industrial, riquíssimo. Minha mãe é de família aristocrata e trabalha como professora de Letras. Com minha carreira, nos últimos anos, enriquecemos também, eu e Veronika. Tenho o capital suficiente para me instalar nesse quarto enorme, que faz minha convalescência parecer uma temporada num hotel-fazenda.

Nunca me senti mal por ter dinheiro, porém, agora, sinto-me deslocada, como se a raiva sentida hoje pela manhã tivesse se tornado numa fonte de egoísmo incomesurável. Sinto-me sozinha no difícil trabalho de me proteger e de me manter sã por dentro.

Eu tenho consciência de que há quem sofra mais do que eu estou sofrendo com este acidente. Há homens, mulheres e crianças pelo mundo que esperam longos anos por uma cirurgia mais simples do que as que eu tenho feito para reparar a mnha perna. E sei que muitos morrem sem socorro, após acidentes bem menos graves do que o que ocorreu comigo. Contudo, não consigo mais ser solidária a dores alheias.

Estou isolada e vitimizada por esta escuridão que cobre minha memória, que me faz sentir uma idiota todas todas as vezes que os psicólogos me pedem par me lembrar de algum detalhe desde a saída da casa de Beth, ou quando eles me dizem que há algo importante de que eu não consigo me lembrar. Por que os fatos não se revelam a mim? Não seria mais fácil eles me descortinarem logo este mistério?

Ah, que se danem! Que me deixem viver esta solidão em que eu me joguei. Porque EU bebi vinho na festa de Lúcio, EU peguei minha moto, EU a guiei desatentamente, EU ultrapassei um sinal e EU me esborrachei no chão. EU virei este ser quase inválido, EU tenho uma perna partida em cinco, EU não sei o que me espera e todo o dinheiro que EU tenho não me livrou nem me livrará de qualquer sofrimento.

É por isso que o fato de ser rica me parece um direito agora, como se eu e minha família tivéssemos acumulado dinheiro para usufruir dele neste momento ruim. Eu me sinto como uma fêmea suricata dominante. EU posso e quero poder ao menos sentir esse colchão d'água me consolando neste espaço de vidro, neste aquário ostensivo, nesse deserto de escorpiões, lagartos e serpentes trasitando em minha mente e em minhas entranhas.

Sou EU quem precisa de lembranças, ou de algum sentido. Porque se antes eu não me envergonhava por ser rica, agora eu penso que tudo isso me serve apenas como consolo. Portanto, nem posso me vangloriar de ser dominante, ou matriarca do que quer que seja, porque estou só e porque, entre nós humanos, a dominância se estabelece sem qualquer lógica; ela se estabelece apenas porque conseguimos obter mais e mais vantagens uns sobre os outros. Será isso o que nos faz tão inábeis: sermos julgados pelo que obtemos e não pelo que somos?

Que seja! Importa-me saber que minha vida foi traçada para que eu estivsse aqui e agora. E eu preciso desse quarto de hospital luxoso e de vidro, desse colchão d'água e dessa televisão enorme e eu os mereço.

Que eu não seja como a suricata matriaca, que eu seja apenas uma macaca inferior, mas oportunista. Que eu seja uma tigresa solitária, sem filhotes, a procura de caça no período seco. Importa-me saber do que eu perdi; a diferença está em descobrir o que vem a me ensinar esta reclusão e esta perna quebrada.

Estou sozinha no mundo e não há motivo para puxar da memória uma imgem sequer. Prefiro esquecer minha pretensa superioridade e ressaltar minha necessidade de estar pronta para o que quer que a vida me traga a partir de agora.

A raiva da pomba

Sinto a raiva triste das gazelas em meio a uma caçada de leopardos. A raiva desconsolada da lula abocanhada pelo tubarão.

A raiva sem remédio, a raiva dos injustiçados, a raiva dos mais fracos.
Sinto queimar em mim um remorso auto-comiserado por minha perna partida, por este ambiente hospitalar no qual eu tive que ser instalada, isolada, mantida compulsoriamente, como numa torre de sacrifícios.

Sinto a raiva do veado abocanhado pelo crocodilo, o ardor da raiva do cardume inteiro de sardinhas rodeado por um cardume de golfinhos famintos. Sei agora o que é estar dominada e obrigada a dar à vida um destino insólito.

E ainda este remorso estanho e sem justificativa aparente, uma sensação de que perdi alguma coisa grandiosa. Porém, deve ser assim mesmo: na boca da fera a escuridão envolve o corpo e a alma do animal caçado, de modo a não lhe restar um recanto íntimo preenchido, por algo que não seja um vácuo de medo, incerteza e dor.

Sinto a raiva da pomba capturada no ar por um gavião, em plena metrópole.
Sinto a raiva da ratazana comida pela serpente, multiplicada pela raiva da serpente a ser pinçada pela água serpenteira. Sinto agora a raiva dos que vão, incapazes de reivindicar outra alternativa. Fui pega, caçada, deglutida. Rebatizo-me: Guta, a dilacerada.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

O vôo da pinguim

Venho de um coma.
Consigo dizer apenas que eu sofri um acidente terrível, durante a festa de aniversário de Lúcio. Eu não me lembro do que aconteceu. A minha última memória é a do carro vindo em minha direção.

Agora, estou num hospital. Meu fêmur direito se quebrou em cinco lugares e eu perdi massa óssea nessa perna. As informações são tantas e tão excessivas! Estive mais de dois meses em coma, quebrei a clavícula e trinquei a bacia, estas agora já estão melhorando. Escrevo com certa dificuldade, mas não sinto muitas dores, porque estou com os estímulos de dor controlados por fortes anestésicos.

Há seis dias, senti uma pontada lanscinante, que me subiu por todo o corpo e eu apenas gritei. O médico depois me explicou que eu devo ter sentido dor ao longo de todo o coma; que, embora a dosagem de anestésicos fosse alta, não superaram a força da sensação dolorida, que emanava de minha perna destroçada. Enquanto eu vagava por vales escuros, meu corpo produzia uma dor aguda a qual eu sequer sentia. Agora, para confirmar que estou viva, preciso sentir dor, como um silêncio incômodo e suportável.

Estou assistida por uma equipe que comporta desde médico ortopedista a nutricionista, passando por psiquiátra, três psicólogos e dois fisioterapeutas. Todos estão orientados a me puxarem a memória, extrair alguma informação que eu não faço idéia qual seja. Vieram aqui dois investigadores policiais, que me fizeram o favor de descrever o que ocorreu naquela tarde de início de agosto.

Disseram-me que fui lançada a quase dez metros do local do acidente. Disseram também que eu tinha algum álcool no sangue e disseram que muito sangue rolou pela avenida. Disseram-me que eu atravessei um sinal amarelo e que fui pega por um carro que não freiou enquanto vinha em direção perpendicular. Perguntaram-me se eu me lembrava com quem saí da casa de Beth e, claro que eu saí sozinha de lá.

Lembro-me de estar animada para pegar um dos nossos filmes da faculdade em minha casa, lembro-me do vinho - logo eu, que não sou ligada a bebidas - lembro-me de ouvir Veronika pedir para eu não sair e me lembro do cachorro de Beth, que latia com olhar fixo em meu olhar. Latiu alto e claro, acho que agora sei o que ele queria me dizer. Não me lembro de outros detalhes, minha lembrança pula deste ponto da ação na casa de Beth à exata hora em que o carro se chocou contra mim e eu voei, mas não me lembro de ter voado...

Se voei, não o fiz como uma águia, uma pomba, ou uma beija-flor. Fui lançada ao ar, como uma senhora pinguim perseguida na enseada por um leão-marinho e jogada às pedras por este, para desgrudar sua pele e facilitar a ele o acesso à carne suculenta. Porém, não havia leão-marinho, não era comer a minha carne que se queria neste evento.
Minha carne escapoliu com o choque do meu corpo no chão, minha perna está mais fina, minha memória é literalmente um fio obtuso.