quarta-feira, 26 de novembro de 2008

ovo

Faço um enorme esforço para escrever agora.
Senti mais dores que o normal nos últimos dias, escondi esta piora dos médicos e fui uma infecção "absolutamente evitável" levou ao aumento da dosagem dos remédios, que aumentam meu sono e este gosto amargo e espesso em minha boca.

Portanto, desde ontem tenho a sensação de estar preenchida por um limbo de desolação, como um quarto tomado por fumaça.
No sermão que recebi do ortopedista, descobri que este aparelho infernal parafusado à minha perna ficará comigo por mais dois anos, pelo menos. Ah, meu destino próximo será de extrema provação!
Mal acordei e vieram os psicólogos, um casal sorrateiro e risonho, a insistir sobe minha memória. Pela primeira vez, senti que o que eles me escondem é algo muito grave, ou serei eu que lhes escondo realmente alguma informação? Eles sempre chegam a fim de saber deste algo e eu nunca lhes entrego nada concreto.

Eu não consegui lhes falar sobre outra coisa, a não ser sobre minha mais nova descoberta, sobre a razão de eu ter tido forças para suportar a dor que aumentava dia a dia, sobre esta luz que estampa alguma alegria no futuro obscuro que se desenha à minha frente.

Jonas surge em minha vida de modo a justificar tudo de bom e de ruim que me possa ocorrer de agora em diante. Jonas serve para que eu tenha fé na humanidade, na possibilidade de que o bem algum dia prepondere sobre a maldade. Jonas é doce e ele é cercado de amor.

Até seu irmão, um rapaz de dezessete anos, que volta e meia me pede algum dinheiro para isso ou aquilo, parece ser uma boa pessoa e cobre o irmão com cuidados e carinho.
Ele ficou muto feliz quando soube que eu pagaria pelas despesas do tratamento de Jonas e pela cirurgia. Talvez por isso ele me peça algum dinheiro, e também pela suntuosidade deste quarto. O certo é que eu o neguei sempre e deixei claro que minha ajuda se restringirá às custas do tratamento.
Somos nós, com a arrogância e a presunção, quem estragamos as pessoas simples. Negar-lhe o dinheiro é preservá-lo... de mim?

"O que significa Jonas para você?", perguntou-me a psicóloga. E eu respondi: um ovo. Sim, ele plantou algo em mim que parece ser uma fonte inesgotável de esperança.
Jonas faz toda esta história do acidente fazer sentido. Jonas mantém-se vivo num mundo que não é feito para pessoas como ele, ele tem um dom e esse dom o conecta à sua família; ele trabalha, aos treze anos, com um cachorro adestrado, que o acompanha desde muito cedo; Jonas trouxe-me a certeza de que eu poderei ficar bem. Ele desmoronou um pouco meu mundo de crenças.

"Há alguém mais que lhe cause esta sensação de bem-estar?", perguntou o seu parceiro. Custou-me responder algo, eles continuaram a insistir, até que me caiu uma ficha: Lúcio. Sim, este meu amigo sempre soube me colocar bem, diante de fatos adversos. Se Jonas tem o olhar, Lúcio tem a palavra e o abraço.
Contudo, Lúcio veio sequer me ver, será que ele me esqueceu?

Hoje, este é o maior mistério em minha vida, saber o que terá acontecido a Lúcio. Não consigo me lembrar de aluma briga entre nós, nem de algo que pudesse te-lo feito partir. Ele não comentou sobre qualquer proposta de trabalho no exterior, aliás, ele estava envolvido num projeto sobre arquitetura urbana nacional... O que terá acontecido a Lúcio?

Não acho que Jonas venha a preencher a falta que meu amigo me faz. Jonas vem a somar beleza à minha vida e seria muito bem acolhido por Lúcio, com certeza. Jonas tem aquela candura dos filhotes de tigre, o atabalhoamento atrevido de um pequeno chipanzé, a inteligência e a alegria de um elefantezinho aos pés de sua mãe.

Jonas faz a dominação humana
usual sobre os animais parecer ainda mais cruel.
Jackson tem o privilégio de haver sido amado por Jonas e com ele ter aprendido a viver em segurança. Jackson, que, de início pareceu-me explorado e vilipendiado é, na verdade, um cãozinho especial elevado à condição de artista por um menino sereno e doce.

Qualquer tragédia se torna num acontecimento simples com a presença de Jonas. Para responder àquela pergunta da psicóloga, eu diria, Jonas significa o fim de toda e qualquer culpa em mim.
Jonas é a porta pela qual eu poderei passar com segurança. Ele e Jackson são, hoje, essenciais à salvação de minha alma despedaçada.