sábado, 12 de abril de 2008

Galinha cínica

Estou com sintomas de estafa. Ganhei um atestado médico e estou sem trabalhar. Perco dinheiro, mas preciso de férias. Sexta-feira, deixei Veronica aqui e fui à casa dos seus pais, numa cidade do interior. Dois dias com meus sogros caçadores.

Eles têm uma casa ampla, numa cidade chamada Hidelgarda. Adoro o nome desta cidade, homenagem à filha do homem que "abriu terreno" para a construção dos primeiros edifícios. Conta-se que Hildergarda nasceu numa das primeiras tendas plantadas no chão daquela paragem. Aos nove anos, tornou-se professora de homens, mulheres e crianças que trabalhavam nas contruções. O nome da primeira escola foi o dela. Casada com um primo, resolveu aprender enfermagem. Fez seu próprio parto e virou uma parteira local. A maternidade tem seu nome e até hoje os meninos nascem como nasciam os de Hidelgarda. Matriarca encantada, já velha, fazia doces.

Os pais de Veronica têm uma quinta na região de Hidelgarda. Um sítio maravilhoso com rio, campo e curral. Tempos atrás, uma enorme fazenda. Vendida aos pedaços, hoje apenas umas vinte cabeças de gado ainda pastam por ali, fornecem leite. Galinhas morrem todas as semanas. Eventualmente, um boi é vendido para o abate, porém isso é raro. Eu comi bifes e peixes comprados no mercado, ou galinhas do "quintal", mortas naquele dia, ao molho pardo. Um pomar em redor da casa estava farto de cheirios e sons.

Passarinhos me acordaram nas manhãs que passei por lá. Os gatos e gatas, cães e cadelas, cavalos e éguas, carneiros e ovelhas, porcos e porcas, bois e vacas, patos e patas, perus e peruas, os galos e galinhas que estão por ali conhecem quem manda e quem tem a vassoura, a faca, a lança ou a corda, manda. Estão confinados, "qual o próximo? Qual d enós conhecerá a velhice? Por que ela diz que gosta de mim?", devem pensar isso e se questionarem... ou questionavam a mim?

As vacas nos toleram. Sofrem muito. Ordenhar uma vaca ou ovelha é insidioso, brutal. Talvez pior que roubar o ovo da galinha, não sei... Uma vaca ordenhada mostra-se-nos uma mãe com desprezo. Ou será que reconhece a comida que pasta? Uma vaca compreende hierarquias? E os cavalos? Montar um cavalo é roubar-lhe as patas e a cabeça, pela boca. O sistema de direção e freios da montaria daqueles cavalos passa por os puxarmos para frente, para trás e para os lados com o bride, um tubo de ferro que atravessa sua boca e o liga por uma corda às mãos do cavaleiro ou da cavaleira, porque eu os montei, sempre que estive na quinta, com eles.

As galinhas são como os cães. Parecem convencidas de que perderam sua capacidade de vida fora daqueles domínios. Incrível como não fogem... São capturadas e mortas, aos pares, semanalmente e não correm para além do pomar. Têm medo do pomar, optam por participar da caçada desproporcional. O mesmo com os cães, embora alguns maiores pareciam supor que tivessem alguma força. Apenas assim o suspeitam, porque a domesticação retira-lhe a vida. A sua força é débil, existe quem tenha poderes sobre sua vida e sua morte. No mundo, são objetos. Sempre que vejo um cão, pergunto-me: ele se lembrará de quando sua raça foi livre?

Esta viagem entretanto tem uma particularidade, sobre a qual eu já não escrevo mais hoje: o pai de Verónica é caçador "por esporte". Veronica disse-me que eu fui para a casa dos pais dela para conversar com o seu pai, porque estou obcecada por animais e ele é caçador, e ela nem leu esse blog, mal imagina.

Foram dois intensos dias de discussões com um homem muito inteligente, que diz: "caça-se quase nada hoje em dia. Já nem há muito animal solto para os bons caçadores, animais que valham uma viagem longa, porque não se caça bons troféus no quintal de casa, tem que se viajar..."

Não vou me empolgar com as histórias de caçador do senhor meu sogro agora. Voltarei a elas, muito e muito, mas não voltarei ao trabalho. Eu disse na terapia que cheguei mais doida e é verdade. Ao menos, venho desenhando. Anotei coisas que ouvi e vi por lá.

Senti saudade desse blog, desse espaço vazio, em que eu canto, choro e grito. E isso me lembra uma breve história. No sábado, longe de tudo o que me importava, sentia-me como se ciscasse, feito a galinha cínica. Notei que uma galinha ciscava perto, como se tentasse mostrar que era educada, que merecia parmanecer. Achei-a tão subjugada e triste. Tão velha! Comemo-la domingo, no meu almoço de despedida.