sexta-feira, 14 de março de 2008

Olho de peixe morto

Já reparou quanto tempo um peixe leva para morrer, se capturado por humanos? Quem nunca viu um peixe a saltitar fora d'água? Qualquer criança já assistiu um peixe a morrer.

É digno o urso matar o peixe com ligeireza. O animal luta enquanto pode, não se entrega e eu me pergunto: luta pela vida somente porque lhe dói a carne? Porque outros predadores mamíferos comumente propiciam mortes rápidas à sua presa, ainda que muitas vezes leve-se alguns minutos para uma caça morrer. Como no caso de leões marinhos que, preferem arrancar a pele do pinguim antes de o comer, tem poucos dentes, e então lança-o para o ar, segura a sua perna com a boba e lhe bate com a cabeça na água, para rasga-lo. O pinguim demora a morrer.

Numa caçada como essa, a fuga do grupo pinguim é frenética. A morte com o leão marinho é um destino que ninguém quer, porém alguns sempre morrem. Filhos e companheiras em grandes apuros... O pinguim também preda e por isso sabe que a caçada é necessária, doa a quem doer. Há um acordo, embora não haja um protocolo. Não são só os pinguins ou só os leões marinhos que escolhem suas vítimas. É um acontecimento em si, algo memorável, ser assim... Foge-se para manter a espécie; os que ficam podem conhecer a morte lanscinante com o enorme companheiro do oceano e das baias e das encontas de pedra. E é assim caminha a comunidade polar e seus crimes sem culpa.

Nos trópicos, um búfalo abatido por leoas recebe uma única mordida na jugular, que o fará morrer de asfixia. Enquanto morre, as outras o flajelam no abdome e as pernas, num orquestrado de dentes e unhas... Os olhares das leoas durante a refeição é de um júbilo indescritível. Não há ódio, comer é cerimonioso, quase.

Pergunto a mim mesma se o vegetarianismo do búfalo não lhe permite compreender a sua morte e ele acredita que o felino é mau. Ou ele sabe que vai morrer, mas sofre porque foi o escolhido, como num jogo de azar. Há sentido falar em bem, mal, sorte e azar numa caçada de um felino a um búfalo? O animal apanhado sente dor na carne e na entranha. Quando descobre que a vida lhe foi tomada, debate contra o fato, se contorce e grita, parece pedir por ajuda.

Volto a me lembrar do peixe, e penso que haja ao menos duas possibilidades d'ele vir a morrer: uma situação, em que o ato se consuma com brevidade e outra, em que surge um anzol ou um emaranhado de cordas, partindo-lhe a cabeça aos poucos, enquanto os outros tantos do cardume também são abocanhados por aquilo... E quando se sobe ao vento forte sobre o oceano aberto sabe-se, 'sim, é isso, meu fim, nosso fim'. E, depois, jogado num barco ou na terra, ainda vivo, pula muito, agoniza ao sol. Tudo o que não queria que lhe acontecesse...

O urso , por sua vez, abocanha, morde-o e com a pata o quebra ao meio. O peixe morre já na mordida. É muito melhor para um peixe morrer pelo urso, o restante do grupo compreende quando ursos, golfinhos ou tubarões comem alguns, assim como o búfalo compreende a necessidade felina.

Acho que os animais não conseguem compreender os métodos humanos, porque somos demasiado sádicos, embora no fim das contas queremos, como os demais, apenas come-los.

Eu via os peixes estendidos no balcão gelado, com os olhos abertos: ainda enxergam?, eu pensava, meninota. Meu pai dizia que sim, minha mãe que não.

Peixes: penso no quanto são gostosos enquanto os como, mas agora sinto bem perto a solidão de sua morte lenta. Eu, como pisciana, sofro por nunca haver pensado demasiado no peixe morto. Toda a interpretaçao sobre mim mesma oferecida pela astrologia me remetia ao peixe vivo, a fluir, sempre leal aos seus. No entanto, já passaram tantos cadáveres pala minha geladeira... Será por isso mesmo que consigo, nesse momento, acompanhá-los, os peixinhos, nesta enorme agonia? Vejo-me pelo avesso, como se me visse morta. Os astros apagados, animais mortos e eu na rede com um cardume.